As uniões poliafetivas são intrinsecamente desiguais e
seu reconhecimento normatiza a iniquidade
Em 2012, um tabelionato lavrou a primeira escritura
pública, até onde se sabe, reconhecendo a união estável entre um homem e duas
mulheres. Três anos depois, foi a vez de três mulheres terem reconhecida sua
“união poliafetiva”. Diante disso, a Associação de Direito de Família e das
Sucessões (ADFAS) fez um pedido à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), em 2016, para que a matéria seja regulamentada e as
“uniões poliafetivas” sejam declaradas ilegais. O caso deve voltar ao plenário
do CNJ no próximo dia 22. Mas qual o problema, afinal, de pessoas adultas
viverem juntas em união estável poliafetiva? Por que o Estado teria algo a ver
com isso? Não seria o caso de simplesmente se lhes reconhecer uma liberdade que
as pessoas que querem viver em monogamia já têm?
Não poucos anos atrás, essas perguntas seriam impensáveis
e a rejeição da poligamia (um homem vivendo com mais de uma mulher) ou da
poliandria (uma mulher vivendo com mais de um homem) seria imediata, por ferir
nossas intuições mais vitais. E aqui talvez resida o drama do nosso tempo:
demos por óbvias muitas verdades por muito tempo e não nos esforçamos por
defendê-las. Uma dessas verdades é que as uniões poliafetivas (chamemos assim
todos os arranjos possíveis) são uma profunda agressão à dignidade humana.
É evidente, para quem tenha refletido em profundidade no
significado da dignidade humana, que a poliafetividade agride essa mesma
dignidade. Quando se afirma que o ser humano tem uma especial dignidade,
afirma-se que ele é dotado de um valor extraordinariamente elevado, de uma
nobreza ímpar, decorrente da riqueza de seus potenciais (inteligência, vontade
e afetividade, para Aristóteles; autodeterminação, para Kant, por exemplo). Por
outro lado, quando se pensa na união conjugal, se pensa naquele tipo de união
em que duas pessoas compartilham seus mundos, tanto interior quanto exterior,
enriquecendo-os e envolvendo-os num projeto comum. E, como já escrevemos em
outro momento, “um coração dividido não dá tudo o que é devido ao parceiro”.
Uma verdadeira relação conjugal é caracterizada pelo mais
alto grau de cumplicidade, de entrega da própria vida, e é impossível fazer
essa entrega a duas, três, quatro ou dez pessoas. Mais ainda, a aparência dessa
entrega é uma agressão à dignidade, pelo aviltamento de cada uma das pessoas
nessa relação múltipla. De fato, quando se aborda o do ponto de vista da
igualdade, um valor especialmente estimado por todos nós, modernos, fica mais
fácil compreender o mal da poliafetividade.
A monogamia é o único arranjo conjugal que respeita a
dignidade humana e contribui para o bem comum
As uniões poliafetivas são intrinsecamente desiguais e
seu reconhecimento normatiza a iniquidade. Em qualquer arranjo conjugal com
mais de duas pessoas, sempre haverá o preferido para a satisfação dos desejos sexuais,
o predileto para se conversar sobre este ou aquele assunto, o escolhido para se
acompanhar nesta ou naquela aventura. De uma forma ou de outra, todos acabarão
instrumentalizados por este ou aquele desejo passageiro de um dos integrantes
do arranjo. Mais do que isso, e aí reside a mesura que o vício presta à
virtude, é normal, nas relações poliafetivas, que o indivíduo dominante acabe
por eleger informalmente sua parelha preferida, o que é facilmente comprovado,
quer por pesquisas, quer pela experiência cotidiana de muitas pessoas que têm
embarcado no conto do vigário do “poliamor”.
Por isso, o histórico prestígio dado à união monogâmica
no Ocidente não é fruto de mera conveniência de época, mas sim resultado de uma
conclusão natural a respeito da dignidade humana e do amor conjugal, que, por
sua própria essência, não pode ser repartido em inúmeras fatias e manter-se
autêntico amor. O fato é que o amor entre os cônjuges é tão sui generis na
intensidade de seu compromisso que não é possível senão vivê-lo a dois. Ele
consiste na entrega plena de um ao outro em vista de um projeto de vida comum.
Sendo plena, essa entrega não pode ser dividida sem ser enfraquecida,
prejudicando aquela que é a razão de ser da conjugalidade – a experiência de um
amor tão total, incondicional e exclusivo que, na monogamia, quando se casa, se
diz: tudo que de mim for conjugal será teu, tudo que de ti for conjugal será
meu, celebrando-se a igualdade na vida privada.
Tampouco se deve ignorar, como também já argumentamos
neste espaço, o mal que a poliafetividade trará às crianças porventura criadas
em tais arranjos, por crescerem privadas do contato diário com a experiência
profunda de amor monogâmico entre seus pais. Enfrentar essa questão com o rigor
que merece fugiria de nossa intenção aqui, mas é preciso ter clareza que o
consenso nas ciências sociais mostra que a desestruturação familiar tem impacto
direto no bem-estar de crianças e adolescentes, perpetua ciclos de pobreza,
fomenta a criminalidade e mina a capacidade de autoafirmação e comportamento
responsável dos seres humanos, que são requisitos fundamentais do autogoverno
democrático. Em suma, a monogamia é não só o único modelo conjugal que respeita
a dignidade humana, mas também o único que realmente contribui para o bem comum.
Nada disso é novidade aos olhos do direito brasileiro. A
Constituição Federal, em seu artigo 226, § 3º afirma que “Para efeito da
proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. O
Supremo Tribunal Federal (STF), mesmo ao reconhecer a possibilidade de união
estável entre homossexuais, passou a interpretar a união estável como possível
entre “duas pessoas”. A jurisprudência brasileira é firme ao reconhecer como
ilícitos civis, em regra, o concubinato e a união estável paralela, por
contrariarem todo o sentido do regramento de família, que tem por base a
monogamia.
Se o Estado deveria proibir ou criminalizar o mal da
poligamia, enquanto agressão à dignidade humana, é uma questão que foge daquilo
que se discute aqui e tem relação com os limites do poder estatal. O que não se
pode admitir é que o Estado chancele tal agressão, dando-lhe o manto da
respeitabilidade social. Se os tribunais resolvessem inovar a ordem jurídica e
reconhecer a licitude da poligamia, isso já seria um absurdo. Que os cartórios
o queiram fazer, é um acinte. O CNJ fará bem ao acolher o pedido de
providências e impedir esse disparate.