O Observatório da Imprensa fez uma matéria sobre o livro,
que reproduzo abaixo.
A dignidade que todo paciente merece
Por Simone Silva Jardim em 10/8/2010
O historiador e pesquisador médico Luis Mir, ganhador do
Prêmio Jabuti com a obra Genômica (2005), acaba de lançar o livro O Paciente –
O caso Tancredo Neves (Editora de Cultura). Professor visitante da Faculdade de
Medicina da USP, Mir reúne nesse novo trabalho farta prova documental para
desnudar, e também pôr um ponto final, num episódio dramático que mudou
radicalmente a transição democrática no Brasil: a morte do presidente Tancredo
Neves na noite de 21 de abril de 1985, aos 75 anos de idade.
Mir reconstituiu minuciosamente o itinerário médico deste
caso, com início desastroso em Brasília e desfecho dramático em São Paulo. Para
isso, realizou entrevistas com os profissionais diretamente responsáveis pelo
atendimento ao presidente, confrontando não as versões em torno do caso, mas as
anotações feitas por eles mesmos no prontuário do ilustre paciente. "Essa
documentação pertence ao país, sua validade corporativa expirou no falecimento
do paciente. Como historiador, afirmo que a história médica de Tancredo Neves é
parte indissociável de sua história política."
BaseBaseado nas provas que reuniu, Mir faz uma revelação
ao mesmo tempo chocante e definitiva:
"Tudo o que aconteceu clinica e cirurgicamente no
Instituto do Coração para o paciente Tancredo Neves não alterou um centésimo
seu estado critico – morreu cirurgica e hemorragicamente em Brasília e foi
enterrado clinicamente em São Paulo."
Para o pesquisador, a imprensa também foi vítima neste
caso, pois os boletins divulgados pelas equipes médicas eram mentirosos.
"As tentativas da imprensa de romper essa muralha indevassável eram
publicamente ridicularizadas pelos médicos e poderosos da Nova República."
Volta do exílio para a posse
Estar na hora certa, no lugar certo, fazendo a coisa
certa. Para um historiador, essa experiência tem um significado realmente
extraordinário. Pudera. Ele passa a condição de testemunha ocular de fatos
relevantes, e não de mero narrador que tem que se contentar com as versões que
simplesmente sobreviveram ao tempo, às vezes com feições esquálidas ou, pelo
contrário, que se impõem com riqueza de detalhes muito mais pela vontade do
poder dominante que pela voz dos vencidos.
Por volta das 18h do dia 13 de março de 1985, o médico e
historiador brasileiro Luis Mir teve sua oportunidade de ouro. Manteve um
encontro oficial com o presidente Tancredo de Almeida Neves horas antes de o
ilustre democrata ter sido diagnosticado, equivocadamente, com uma apendicite
aguda e daí pra frente padecer uma sucessão de erros grosseiros que lhe ceifaram
a vida.
Um parêntese. Como tantos outros brasileiros que optaram
pelo auto-exílio, Luis Mir morava na Espanha desde 1973 e voltou ao Brasil em
1985 apenas para participar da festa de posse do mineiro Tancredo Neves, o
primeiro presidente civil depois de 21 anos de regime militar. "Saí do
Brasil por incompatibilidade de objetivos com os golpistas. Na época, eu
participava, e continuo na militância, do Partido Comunista Brasileiro. Meu
objetivo era ver Tancredo Neves tomar posse. Em poucos dias, regressaria à
Europa para iniciar meu doutorado."
Um pedido ao presidente
Mir tinha trânsito fácil junto ao presidente Tancredo
Neves porque mantinha um relacionamento com Cynthia Peter, assessora no Comitê
de Imprensa do gabinete, em Brasília.
"Lembro como se fosse hoje. Eu estava na Asa Norte,
nas dependências da Fundação Getúlio Vargas. Para chegar ao gabinete de
Tancredo Neves, subi uma pequena escada; a sala ficava no final do corredor, à
esquerda. A secretária dele pediu que eu fosse breve porque ele estava de saída
para um compromisso. Ele apertou minha mão e pediu desculpas, dizendo que
tínhamos pouco tempo para conversar. Chamou minha atenção uma pessoa, toda
vestida de branco, sorridente, que estava ao seu lado. Mais tarde soube que se
tratava do renomado clínico Renault Mattos Ribeiro. Então, com poucas frases,
disse o que pretendia: "Presidente, vim lhe fazer um pedido especial em
nome do Partido Comunista Brasileiro. O senhor, democrata de longa data,
precisa dar apoio às negociações de paz na América Central. As guerras civis em
El Salvador e na Nicarágua estão penalizando os povos, e digo isto com
conhecimento de causa, pois acabo de voltar de lá."
A resposta de Tancredo Neves, segundo Mir, foi esta:
"Podem contar conosco." O assessor tomou nota, Mir entregou os
documentos e todos saíram juntos, conversando. "Eles entraram num Galaxy e
fiquei ali parado na calçada, até perder o veículo de vista."
Erro de diagnóstico
Tancredo Neves estava a caminho do Centro Radiológico Sul
para fazer um exame de ultrassom no abdome, que lhe doía. "A escala de
horrores que foi o atendimento a este paciente começa aí, com um erro de
diagnóstico primário. Confundiram um tumor com uma apendicite abscedada
[aguda]." Mir aponta com o dedo, na imagem ultrassonográfica feita no
início da noite do dia 13/03 em Tancredo Neves, os contornos do tumor, cuja
reprodução está na página 33 de seu livro.
"A imagem é nítida quanto à existência de um tumor
com necrose. De imediato, bastava entrar com antibioticoterapia, identificar o
foco infeccioso e só depois operar. Na época, e ainda hoje, é esse o
procedimento que deve ser adotado. Portanto, não havia urgência, não havia
risco de vida, ele poderia ter tomado posse tranquilamente no dia 15."
Na madrugada do dia 15/03, quando Cynthia foi chamada às
pressas para ir ao Hospital de Base de Brasília (HDB), onde o presidente
acabara de sofrer uma cirurgia cheia de complicações quase indo a óbito, Mir a
acompanhou. Havia muito tumulto por lá. Jornalistas, curiosos, todos queriam
saber o que estava acontecendo. Por volta das 4h30, o casal deixou o HDB.
"Recordo que assim que chegamos ao hospital,
encontrei dois amigos médicos que estavam de plantão. Eles não tinham
participado da cirurgia, mas me apresentaram um neurocirurgião que tinha
acompanhado alguns procedimentos quando Tancredo Neves foi removido para a UTI.
Senti um enorme pesar ao compartilhar com Cynthia que, com base no que tinha
apurado, ele não tomaria posse. Ela ficou incrédula. No dia 17/03, ele estava
perdendo muito líquido e teve uma crise respiratória brutal. Pela segunda vez,
quase vem a óbito."
As cirurgias, os boatos e a farsa
A história clínica de Tancredo Neves é resumida assim
pelo pesquisador médico: "Ele foi vítima de um erro de diagnóstico
primário, seguido de uma cirurgia desastrada. O tumor de Tancredo Neves não
estava provocando obstrução, hemorragia ou infiltrado na parede intestinal, daí
ser dispensável a primeira cirurgia, onde a imperícia nas suturas fez com que o
paciente sangrasse desde o primeiro momento. Não tenho dúvida que atenderam
magnificamente bem o presidente, com muitas deferências, mas esqueceram do
paciente."
Questionado sobre as várias versões, algumas
conspiracionistas, que até hoje circulam sobre a morte de Tancredo Neves, como
a de que ele teria sido vítima de uma armação perversa dos militares que teriam
ordenado a mal-sucedida operação no HDB para continuar no poder, Mir dispara:
"Tudo não passa de boatos. A prova documental é
robusta e inquestionável. Ele foi a óbito num quadro catastrófico decorrente de
diagnósticos equivocados, procedimentos inadequados, avaliações heterodoxas,
quebra de condutas e rotinas em cascata de responsabilidade de seis médicos que
chefiaram o atendimento. Tudo o que aconteceu clinica e cirurgicamente a partir
do dia 26 de março no Instituto do Coração não alterou um centésimo o estado
crítico do paciente. Tancredo Neves morreu cirúrgica e hemorragicamente em
Brasília e foi enterrado clinicamente em São Paulo."
Acompanhar o cortejo fúnebre do presidente fez Mir, 25
anos atrás, tomar uma decisão: "Eu contaria essa história do ponto de
vista clínico e cirúrgico, pois três coisas me incomodavam. Primeiro, ele tinha
sido mal operado e mal acompanhado no pós-operatório. Passara por duas
cirurgias desastrosas, precedidas de dois diagnósticos equivocados. Segundo, a
morte de Tancredo Neves foi cercada de um emaranhado de tergiversações e de
manipulações. A farsa precisava ser desmontada. Terceiro, resgatar a dignidade
do paciente excelente que foi Tancredo Neves, pois ele atendeu todas as
prescrições, foi disciplinado e sofreu muito e desnecessariamente."
Um infortúnio médico o derrubou
Nas 384 páginas do livro O Paciente – O caso Tancredo
Neves (Editora de Cultura), a documentação reunida por Luis Mir realmente
impressiona. Melhor ainda é que tudo é explicado de forma que o leigo entende.
Mas por que só agora a "verdadeira história" vem a público?
"Muita gente já me questionou sobre o motivo da
demora para lançar esse livro, que iniciei em 1994, dei uma parada e só retomei
as pesquisas em 1998, com todas as despesas de viagens bancadas por mim.
Venhamos e convenhamos, ainda hoje essa historia é tão traumática e mais ainda
é notória a resistência das pessoas em aceitar a verdade dos prontuários, dos
exames, do laudo da necrópsia. Fiz a análise criteriosa de todos esses
documentos, que somam mais de 900 páginas. Passei e repassei os fatos, com os
prontuários em mãos, com todos os médicos que atenderam Tancredo Neves."
O pesquisador revela que para ter acesso à documentação –
o principal está no livro – precisou de mais de dez anos de muita persistência.
"Escrevi esse livro na condição de historiador e
pesquisador médico, queria colocar à disposição da sociedade brasileira
documentos que servissem para esclarecer uma parte fundamental da História do
nosso país. A coleta de dados também incluiu entrevistas que gravei com todos
os médicos que atenderam Tancredo Neves. Houve casos de colegas que demoraram
anos apenas para amadurecer a ideia de voltar a falar no caso. O interessante é
que todos que deram depoimento chegaram à conclusão, cada qual a seu tempo, de
que era hora de tirar todas aquelas vendas e manipulações. Só quando chegaram
nesse ponto, puderam responder, com honestidade, às minhas perguntas. Ou seja,
por que quebraram todas as rotinas em detrimento do bem-estar do paciente e não
conseguiram mais parar com toda aquela loucura de novas intervenções? Não é
demais lembrar que, quando abriram pela primeira vez o abdome de Tancredo Neves
e perceberam que o diagnóstico estava equivocado, não havendo risco de morte, a
única coisa que teria de ser feita era medicá-lo para que tomasse posse,
admitindo a equipe publicamente o erro. Para mim é muito doloroso saber que
este paciente foi um homem preparado a vida inteira e que merecia ser
presidente. Um infortúnio médico, e não militar, o derrubou."
Mentiras à imprensa, à sociedade, a todos
Luis Mir acredita que seu livro retira o cadáver de
Tancredo Neves das costas da medicina brasileira ao atribuir responsabilidades
a quem, de fato, contribuiu para o dramático desfecho desse caso clínico.
"Os nomes dos profissionais que o atenderam estão dados e identificadas as
responsabilidades ética e médica de cada um. Mas meu livro não é um tribunal e
como autor eu não sou juiz de quem quer que seja."
No dia 17 de abril de 1985, amigos de Luis Mir que
trabalhavam como médicos no InCor (Instituto do Coração de São Paulo, onde
Tancredo Neves estava sob os cuidados do cirurgião Henrique Walter Pinotti) confidenciaram
que o presidente já estava clinicamente morto.
"Até o último momento, o dr. Henrique Walter
Pinotti, que comandava a equipe que tratou de Tancredo Neves no InCor, mentiu
aos jornais, aos jornalistas, à sociedade, a todos. Tudo em nome de um pretenso
direito do Estado de tranquilizar a opinião pública e a Nova República. Foi
divulgada, mantida e afiançada uma farsa perversa com a própria família, que
acreditava na palavra da equipe médica que ele sairia do hospital para tomar
posse. Afirmo como historiador que os órgãos de imprensa brasileiros e os
jornalistas que fizeram essa cobertura merecem um desagravo formal por parte
das entidades médicas, pois a mentira foi completa, total e cabal. No livro
reproduzo todos os boletins divulgados para a mídia que, comparados com os
prontuários, mostram o grau de manipulação. Mais: as tentativas da imprensa de
romper essa muralha indevassável eram publicamente ridicularizadas pelos
médicos e poderosos da Nova República" [os Conselhos Regionais de Medicina
de Brasília e de São Paulo soltaram notas públicas em 26 de fevereiro de 1986
afiançando que as condutas adotadas e a competência profissional estavam
corretas no caso Tancredo Neves].
A "judicialização" da medicina
Segundo Mir, o epílogo da morte de Tancredo Neves foi
"montado" dentro do InCor. "Acharam que conseguiriam transformar
a farsa em verdade ao dizer que a morte de Tancredo Neves foi uma surpresa para
toda equipe. Essa versão foi decidida por Henrique Walter Pinotti.
Impressionante como as pessoas acreditam equivocadamente que podem se apossar
da história, determiná-la e conduzi-la. A história não pode ser determinada ou
conduzida; é ela que faz isto conosco. Tive quatro entrevistas muito difíceis
com o dr. Pinotti. Era um fantasma na carreira dele, o caso Tancredo Neves. E
ele fez tudo por vaidade, pois acreditava que mantendo o presidente com drogas
e aparelhos, ele tomaria posse, mesmo que fosse numa cadeira de rodas. Até o
dia 17 de abril de 1985, os boletins médicos afirmavam, de forma mentirosa, que
não havia sequelas neurológicas graves e que havia perspectiva de cura para o
presidente. Tancredo Neves já estava clinicamente morto. Alguns médicos da
equipe pediram afastamento. A expressão mais bondosa que ouvi de alguns deles
sobre o Dr.Pinotti foi que ele estava surtado."
Mir acredita que seu livro também tem o papel de informar
a opinião pública e sensibilizar especialmente médicos e pacientes sobre a
importância do prontuário médico e a existência dos limites do atendimento.
"Todas as condutas e procedimentos devem ser
cuidadosamente anotados. O médico precisa estar ciente que o fácil acesso ao
prontuário é um direito de todo paciente. Outro aspecto importante: as pessoas
precisam ter a noção de que, em medicina, não se podem fazer acusações
gratuitas. O paciente que se sente prejudicado deve pedir perícia médica para
verificar, à luz da ciência, a inadequação de procedimento ou conduta temerária
de quem o atendeu. Pacientes verdadeiramente prejudicados devem ser
indenizados."
Sobre a chamada "judicialização" da medicina no
Brasil, Mir avalia: "Com base na Constituição Federal, muitas vezes o
magistrado faz uma interpretação mecânica, confundindo direitos fundamentais do
cidadão com os do paciente. O paciente tem direito a ser bem atendido, mas é
preciso que se leve em conta as condições materiais e de trabalho para a
atuação do médico, saber qual a sua formação naquele atendimento concreto.
Mais: medicina não é ciência exata e determinadas evoluções no quadro do
paciente são mesmo imprevisíveis e independentes do ato médico. A capacidade de
diagnóstico também é limitada em termos físicos e de conhecimento.
Infelizmente, morreram muitas pessoas até o HIV ser devidamente identificado.
Hoje temos uma série de infecções oportunistas, as chamadas doenças
reemergentes, mutações genéticas e outras 'janelas´ que a ciência médica vai
precisar de tempo para dizer o que está acontecendo. O fato é que não existem
mortes inexplicáveis. O que temos são mortes ainda não esclarecidas por
absoluta falta de conhecimento científico", conclui Mir, que coordena uma
pesquisa patrocinada pelos Ministérios da Educação e da Saúde que vai
apresentar, até 2012, um diagnóstico completo da qualidade de ensino oferecida
pelas 186 escolas brasileiras de Medicina.
Nota 1
Nota 2