A fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva comparando as ações do Estado de Israel na Faixa de Gaza com o Holocausto foi um erro e acabou beneficiando a oposição bolsonarista no Brasil, avalia o embaixador Rubens Ricupero, ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) e ex-ministro do Meio Ambiente em 1993 e 1994. e da Fazenda em 1994.
Segundo o diplomata, Lula ofendeu milhões de judeus e fez uma distorção da história. “A situação de Gaza é terrível, mas não precisa dizer que é um genocídio e comparar com o Holocausto”, afirmou ao Valor. “E foi um erro também não pedir desculpa. Quando se erra, a melhor maneira de admitir é reconhecer e pedir desculpa. Não vejo [nesse ato] humilhação. Ao contrário, mostra certa grandeza de alma.”
Ele argumentou que Lula estava se saindo bem ao tentar reinserir o Brasil no cenário internacional, mas que agora isso pode ter sido prejudicado.
Para Ricupero, quem sai beneficiado nessa história é a oposição no Brasil. “Os únicos que saem ganhando com isso são os opositores do Lula. Quem vai ficar feliz com isso é pessoal do [ex-presidente Jair] Bolsonaro, da extrema direita, que já apresentaram pedido de impeachment”, diz. “Para eles, isso foi um prato caindo do céu. Eles estavam sob críticas na questão do golpismo (...). Estavam na defensiva. De repente, esse assunto é uma maravilha, porque eles partem para o ataque.”
Leia a seguir os principais pontos da entrevista:
Valor: Como o senhor vê a fala e a reação de Israel?
Rubens Ricupero: Penso que foi um erro é o que ele fez. Foi um erro histórico, porque ele ofende milhões de judeus e faz uma distorção da História. O Holocausto é um acontecimento único, incomparável, não há nada que se assemelhe a isso. A situação de Gaza é terrível, mas não precisa dizer que é um genocídio e comparar com o Holocausto, que são excessos de linguagem que vão além da realidade. Penso que foi um erro ele não pedir desculpas. Quando se erra, a melhor maneira de corrigir é reconhecer que errou, admitir o erro e pedir desculpa. Não vejo [nesse ato] nenhuma humilhação ou tipo de problema moral. Ao contrário, mostra certa grandeza de alma. Ele mesmo no passado disse que era uma “metamorfose ambulante”. Já admitiu que errou no caso de Cesare Battisti [italiano asilado no Brasil por 14 anos e condenado em seu país à prisão perpétua], inclusive pedindo desculpas ao presidente na Itália. Não vejo por que não pudesse tomar essa atitude.
Quanto há um incidente diplomático derivado de palavras, de certa forma, é mais simples de superar. Quando há a invasão de um país, um bombardeio, aí as consequências são mais graves. Mas as palavras podem-se corrigir com outras palavras, desde que adequadamente. Não vejo que seja tão difícil ele fazer isso.
Valor: E a reação de Israel?
Ricupero: Israel, de certa forma, complicou porque também aproveitou a ocasião para fazer algo que não devia. Eles quiseram humilhar publicamente o embaixador. Mas um erro não justifica o outro, e são erros de natureza diferente. Uma coisa é o que fizeram com o embaixador Fred Meyer, que é constrangedor para o Brasil. Outra coisa é a declaração, que foi muito grave. Acho que as pessoas não se dão conta porque o Brasil nessas matérias é muito desligado da história mundial, mas as únicas pessoas até hoje que compararam as ações de Israel às de Hitler eram aqueles árabes mais extremados, como Yasser Arafat. São gravíssimos os casos desse tipo, muito mais do que está se dizendo aqui.
É muito sério, e a forma mais simples de desmontar isso e evitar escalada seria admitir o erro e passar para uma outra etapa.
Fala-se em diplomacia altiva, e sinceramente, acho que altivez não é uma grande qualidade. Tudo o que tem a ver com soberba e orgulho leva a comportamentos que não são adequados.
Lula, como vai a toda parte e se pronuncia sobre tudo, às vezes ele incide em erros graves”
Valor: O episódio ameaça a volta do Brasil à cena internacional?
Ricupero: Lula estava indo bem antes. Sinto pena porque, em pouquíssimo tempo, ele sepultou aquela ideia de pária, melhorou muito a imagem do Brasil, e ele tem esse dom de estar em toda parte. Esse tipo de diplomacia protagônica e pessoal tem suas vantagens, mas defeitos, como o fato de expor muito. O Lula, como vai a toda parte e se pronuncia sobre tudo, às vezes ele incide em erros graves.
Como no episódio sobre a Ucrânia, ainda na época da campanha eleitoral de 2022, quando disse que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, era tão culpado quanto o presidente [Vladimir] Putin, o que é um absurdo. Então, coisas desse tipo decorrem dessa atividade extrema que ele tem.
Ele estava começando a corrigir isso. Assisti na televisão o discurso que ele fez no Cairo e o que ele fez em Adis Abeba. E o discurso, que deve ter sido feito por diplomatas profissionais, era muito cuidadoso. Ele começava lembrando que condenou o ataque terrorista do Hamas e que exigiu libertação dos reféns sem condições, e depois condenava mortes civis. Enquanto se guiava por discurso escrito, ele estava bem. Mas na entrevista à imprensa deixou-se levar pela emoção, ele é um homem emotivo. Ele interrompe o fio da meada e fala sobre o que Israel estava fazendo e que havia precedentes como o que foi feito por Hitler.
Temas como esse e o da Ucrânia são muito distantes para o Brasil, ao contrário da Venezuela, sobre o qual ele deveria se pronunciar mais. São temas em que não se vê bem o interesse do Brasil em multiplicar declarações.
Valor: O que o Brasil, então, ganha com isso?
Ricupero: O Brasil não ganha nada. Os palestinos não vão ficar melhor com isso. Ele vai ficar péssimo com Israel e com todos os que são aliados e simpatizantes de Israel, em tese. Internamente, os únicos que saem ganhando com isso são uns poucos opositores ao Lula, dentre os quais eu não me encontro. Quem ficará feliz com isso é o pessoal do Bolsonaro, da extrema direita, que já apresentaram um pedido de impeachment. Para eles isso foi um prato caindo do céu. Eles estavam sob críticas na questão do golpismo, daquela gravação da reunião do Bolsonaro com os ministros. Estavam na defensiva. De repente, esse assunto é uma maravilha, porque eles partem para o ataque. Admita ou não, isso foi uma grande ajuda à oposição.
E em relação à comunidade judaica, claro, o prestígio dele não vai melhorar, ao contrário.
Não vejo o que ele ganha. A não ser o orgulho. E orgulho não é um bom conselheiro em diplomacia. Em diplomacia você tem de ter paciência, serenidade, equilíbrio.
Valor: A postura do Brasil é inteiramente errada
Ricupero: Na essência da manifestação, da preocupação brasileira pelas mortes de civis, o Lula tem razão. Tanto que até os EUA, que são os aliados mais incondicionais de Israel, devem votar no Conselho de Segurança uma resolução que pede uma trégua. Eles evoluíram porque tentaram de toda maneira persuadir o governo israelense a não ir adiante com as operações, mas não conseguiram e agora vão engrossar. Mas eles fizeram isso da maneira efetiva, diplomática. Em vez de uma ofensa verbal, essa que os americanos farão é infinitamente mais eficaz.
Valor: O que deve acontecer daqui para frente?
Ricupero: Dependerá da reação dos dois lado. Chamamos o embaixador, ele vem para cá. Mas é bom que depois de algum tempo procure se acalmar esse jogo. E há possibilidade de agravamento. O interesse tanto do Brasil quanto de Israel é limitar os danos, contê-los. Eles estão aí, foram contabilizados, agora vamos passar para outra.
O importante é pacificar. Porque não se trata somente de Israel, mas do efeito que isso tem internamente no Brasil. Recebi mensagens de amigos meus judeus preocupados, sem saber se é seguro os netos crescerem em um país como o Brasil. Nunca imaginei uma coisa dessas no Brasil.
Valor: Há impacto para relações do Brasil com aliados de Israel?
Ricupero: Diretamente, eu não creio. Mas influi no prestígio do Brasil. Em geral, os aliados de Israel são os EUA e os ocidentais, e eles já não estão muito contentes com o Brasil por causa do episódio da Ucrânia e de outros, nesse sentido.
E o Brasil neste ano preside o G20. Era uma oportunidade ótima, única de o Brasil se projetar. Porque o G20 reúne 75% do PIB mundial, e a agenda que havia sido elaborada em consulta com os países se desviava desses conflitos geopolíticos. A agenda tem três pontos fundamentais: a luta contra a fome e a pobreza, aquela velha ideia do primeiro mandato de Lula, a prioridade a uma aliança global contra a mudança climática, e a reforma das organizações da governança global, entre elas o Conselho de Segurança da ONU, o que é uma velha reivindicação brasileira. São três questões difíceis de concretizar, mas que são unânimes. Quem pode ser contra a luta contra fome, contra o aquecimento global? Ninguém.
Permitiria, então, uma atuação do Lula como ele gosta. Só que agora, ao se meter nos conflitos.... Ele insiste em se meter nos conflitos como na Ucrânia, na Faixa de Gaza. Curiosamente, ele evita falar sobre a Venezuela.
Valor: No ano passado, o presidente relativizou a existência de uma ditadura na Venezuela hoje.
Ricupero: Essas coisas acabam comprometendo um pouco o que estava indo bem, que era a recuperação da posição ativa do Brasil no cenário mundial.
Comecei a minha carreira há muitíssimos anos atrás. Em 1961, no governo de Jânio Quadros, eu era chefe de gabinete de Afonso Arinos de Melo Franco [que foi senador e chanceler]. Ele tinha uma frase muito boa sobre a diplomacia do Jânio, que se aplica de certa forma ao Lula. Ele dizia: “O Jânio acerta no atacado, mas erra no varejo”. É um pouco o Lula. Os grandes princípios, as grandes intuições são corretas, mas quando é para aplicar... Se ele faz isso com ajuda profissional e textos escritos, faz bem. Quando improvisa, é um perigo.
Porque esses conflitos sobre os quais ele gosta de pronunciar são muito complicados, são conflitos que dividem. É difícil você dizer alguma coisa sobre a guerra da Ucrânia ou sobre a Faixa de Gaza que possa ser útil ou possa ajudar a chegar a uma solução e que não aborreça um dos lados. Portanto, nessas matérias deve-se ter uma abordagem profissional.
O Lula deveria se concentrar em temas como a luta contra a fome, a luta contra a desigualdade, um esforço mundial para combater a mudança climática, mudar para melhor as estruturas governança. E isso tem um amplo terreno. Por que ele vai escolher falar sobre a Faixa de Gaza? Se tiver de falar, que seja o Itamaraty, que não dirá algo que não deva.
Valor: Esses deslizes do presidente acabam enfraquecendo o Brasil como um ator capaz de mediação?
Ricupero: Acho muito duvidosa a ideia de que o Brasil possa mediar. Aqui se fala muito disso, mas países que medeiam conflitos têm um perfil muito mais discreto que o nosso. Por exemplo, a Suíça sempre fez isso tradicionalmente, mas é de uma neutralidade absoluta. No caso dos palestinos, quem se esforçou foi a Noruega. Países que querem ser muito ativos, proeminentes são complicados, porque para você ser o mediador tem de ser sincero e não buscar o próprio prestígio.
O Brasil tem certa obsessão em buscar prestígio. Talvez porque, no fundo, somos inseguros, sabemos que não temos tanto peso mundial. Mas é muito difícil ser mediador. Para começar, é preciso que os dois lados queiram e peçam. Mas o Brasil já tem uma história nesse problema de Israel com os palestinos que dificilmente o tornaria simpático ao lado israelense. O mesmo no caso da Ucrânia. Quando esses assuntos começam mal, eles não vão terminar bem.