Soberania popular sem limites é a fonte da deturpação do
sentido do nosso republicanismo.
A obra de Denis Rosenfield (O Estado fraturado –
Reflexões sobre a autoridade, a democracia e a violência. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2018, 273 p.) é um balanço, feito à luz da filosofia política e da
sociologia, do drama vivido pelo Estado brasileiro nas últimas décadas,
notadamente ao longo do ciclo lulopetista (2003-2016), que praticamente
desmontou as instituições republicanas. A obra analisa este momento, abarcando as
reformas que os Estados europeus sofreram ao longo do século 20, centrando a
atenção na saga que a social-democracia percorreu nesse século. Em três
capítulos (I – Democracia e autoridade; II – Autoridade estatal e retórica; III
– O Positivismo e a política científica) e uma conclusão (A questão
democrática), o autor desenvolve uma análise crítica e historiográfica que joga
luz sobre os atuais momentos de perplexidade que se abatem sobre a Nação
brasileira.
É deveras dramática a situação de anomia vivida pelo
Estado brasileiro após o ciclo lulopetista. Tal situação é assim caracterizada
pelo autor: “O resultado é evidente: a dissolução da autoridade pública e o
enfraquecimento do Estado Democrático de Direito. Ou seja, em nome da
democracia e dos direitos humanos, a própria democracia e os direitos humanos
são pervertidos” (p. 29).
O desmantelamento institucional patrocinado por Lula e o
PT produziu efeitos perversos para a economia do País. Eis a forma em que, sem
meias-palavras, o autor denuncia o desmonte da economia nacional: “Do ponto de
vista econômico, o País sofreu um processo de intervenção estatal progressiva
na seara econômica, sobretudo a partir da segunda metade do segundo mandato do
presidente Lula. O Estado foi apresentado como um Poder demiurgo capaz de
qualquer realização, conquanto seus recursos fossem também apresentados como
ilimitados” (p. 78). A síntese de todos os males encontra-se, segundo o
professor Rosenfield, na morte do espírito público, que constituiu uma entropia
fatal para as perspectivas do Brasil como nação.
A tarefa de reconstruir as instituições republicanas
esfaceladas pela aventura criminosa do PT no poder foi precariamente cumprida
pelo transitório governo Temer, em decorrência da presença, no seio do Estado,
no atual cenário, de atores políticos comprometidos com a velha ordem de
coisas. Qual é a causa remota, situada na origem do Estado moderno, que,
retomada na nossa tradição republicana, deu ensejo às atuais aventuras do
populismo lulopetista, que se irmanam a outras desgraças vividas atualmente por
povos latino-americanos, como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense?
Para o professor Rosenfield, o caminho errado tomado no
Brasil pelo PT e coligados decorre de uma deformação da tradição
social-democrata, que já tinha acontecido em alguns países europeus ao ensejo
do esforço de reconstrução no segundo pós-guerra. A velha tradição liberal (que
tinha animado aos social-democratas no início do século 20 com as reformas
comandadas na Alemanha por Edward Bernstein) foi sendo em parte posta de lado,
dando ensejo a um estatismo que crescia sobre os direitos individuais.
De maneira semelhante, na tentativa em prol de garantir o
bem-estar geral no seio do Welfare State, os nossos socialistas consideraram
que o caminho deveria ser o da hipertrofia do Estado. O Estado de Bem-estar
Social poderia avançar, com legitimidade, sobre a propriedade dos cidadãos mais
abastados, na tentativa de criar uma nova classe média com os outrora
marginalizados e pobres.
O Estado inchado tinha legitimidade, em decorrência de os
governantes petistas terem sido eleitos. O castilhismo, no Rio Grande do Sul,
argumentava de forma parecida. Júlio de Castilhos defendia-se da acusação de
ter-se desviado do constitucionalismo adotado na Carta de 1891, com o estatismo
que tornou todos os poderes públicos reféns do Executivo. Ora, os reformadores
castilhistas eram legítimos pois tinham sido eleitos!
Considero, contudo, que o arrazoado do professor
Rosenfield não foi completo. Faltou analisar a fonte primeira desta tentativa
estatizante surgida no seio do pensamento social-democrata. O precursor dos
doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque (em Principes de Politique, Paris:
Hachette, 1997) colocou o dedo na ferida quando atribuiu a Rousseau a torta
ideia de que a soberania popular não tem limites por ter emergido da “vontade
geral”. Essa é, no meu entender, a causa da deturpação do sentido do
republicanismo brasileiro, como deixei exposto na minha obra Castilhismo, uma
filosofia da República, 2.ª edição, apresentação de Antônio Paim, Brasília:
Senado Federal, 2010.
Quando os positivistas derrubaram a monarquia, fizeram-no
a partir da convicção de que o poder estabelecido não tem limites pelo fato de
encarnar a “vontade geral”. A aplicação sistemática desse princípio positivista
à política nacional ocorreu por obra de Getúlio Vargas, que materializou a
ideia da ausência de limites para a soberania, herdada do castilhismo. O Estado
getuliano tornou-se uma entidade mais forte do que a sociedade, pelo fato de ter-se
ancorado na ciência aplicada mediante os Conselhos Técnicos Aplicados à
Administração.
À luz do Estado tecnocrático se justificariam todas as
medidas excepcionais tomadas pelos donos do poder para financiar as operações
do lulopetismo, como as pedaladas fiscais. E se explica, assim, de outro lado,
a desfaçatez lulista que acha que não deve prestar contas a ninguém pelo fato
de ter sido eleito. A soberania é limitada e se restringe à gestão do Estado no
sentido de preservar os direitos inalienáveis dos cidadãos, que continuam
gozando dos seus direitos à vida, à liberdade e às posses.
*COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS DA
UFJF, É PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME, DOCENTE DA UNIVERSIDADE POSITIVO, LONDRINA.
E-MAIL: RIVE2001@GMAIL.COM