Todo poder político trabalha, antes de tudo, para
perpetuar-se. Frases como “eles têm projeto de poder, nós temos projeto de
país” servem para consumir papel e tinta (literais ou eletrônicos) mas não têm
significado real no mundo da política. Um atributo notável de Jair Bolsonaro é
a transparência: a alternância com a esquerda não está mesmo nos planos.
Seria (e foi) esperado que esse apego viesse embalado
como do mais alto interesse nacional. Tanto eficaz será a comunicação de
qualquer líder e governo quanto mais o interesse particular for apresentado, e
aceito, como interesse geral. Também por isso o governo Bolsonaro começou bem a
disputa da comunicação. O “Brasil acima de tudo” continua funcionando.
Governar é decidir, e também saber comunicar a decisão.
Quem pede moderação e conciliação no discurso bolsonarista pede que o novo
regime abra mão de sua principal fonte de poder: a convicção popular,
alimentada por anos, de que a solução para os principais problemas do país
reside na eliminação de um pedaço da política. Ou da própria sociedade.
É esperado que os operadores encarregados de aprovar as
coisas no Congresso peçam alívio no discurso. Também parece ser o sentimento
dos estrategistas, quase todos militares. O problema? Quando propõem a
conciliação, governos nascidos de batalhas políticas radicalizadas acabam
passando a ideia de fraqueza. A última vítima disso foi Dilma Rousseff.
O poder é permanentemente rondado por quem deseja tomar o
lugar. No caso de Jair Bolsonaro o perigo imediato não está na esquerda,
isolada e por enquanto dividida. Vem da eleitoralmente pulverizada mas
socialmente sempre influente direita não bolsonarista. É quem melhor
personifica no Brasil o dito globalismo, besta-fera do bolsonarismo.
É uma corrente que está apenas à espera de as coisas
começarem a dar errado para se apresentar como a solução à mão. Exemplos: 1) O
PSDB oferecer-se para entrar no governo Collor, 2) o “ministério ético” do
próprio Collor, 3) a nomeação de Fernando Henrique ministro da Fazenda de
Itamar e 4) Dilma entregar a Michel Temer a articulação política na crise.
O único caso em que isso “deu certo” foi o terceiro, ao
custo de Itamar abrir mão do poder real, concessão necessária para não ser
derrubado. Na prática o governo Fernando Henrique Cardoso começou não em
janeiro de 1995, mas em maio de 1993. Apesar das tentativas de manter viva a
ideia de ter havido um governo Itamar Franco até o final de 1994.
Qual o desafio imediato de Bolsonaro? Inverter
rapidamente as expectativas econômicas para impedir o surgimento de uma bolha
de frustração que drene seu prestígio popular antes de o governo apresentar
resultados. O instrumento à disposição é manter a luta ideológica bem aquecida
e tentar despertar o chamado “instinto animal” do empresariado.
Jair Bolsonaro assume em condições bastante razoáveis.
Inflação controlada, PIB em (lenta) recuperação, apoio maciço no empresariado e
(potencialmente) no Congresso, imprensa ou favorável ou não radicalmente
hostil, oposição entretida em disputas internas (coisa normal depois de
derrota), Forças Armadas a favor e atuando como poder moderador.
Mas, como se diz, uma hora o governo precisará entregar a
mercadoria. A economia precisa reagir, até porque a ideia é substituir
progressivamente as proteções estatais ao povão por oportunidades que a
economia privada oferecerá a esse povão. E quando esse despertar econômico é
tentado mais pelo lado do investimento que do consumo o prêmio costuma demorar
mais.
*
Não há registro no Brasil de Congresso Nacional que tenha
criado problemas para governos que largam com amplo apoio na elite. Fernando
Collor tinha uma base formal estreitíssima e não teve a menor dificuldade para
aprovar o enxugamento temporário de liquidez que quando ele caiu em desgraça se
transformou no “sequestro da poupança". Recordar é viver.
*
O governo Bolsonaro oferece uma grande oportunidade para
o jornalismo. Acabou o tempo em que bastava se indignar a seguir a cartilha das
causas pré-definidas como “do bem”. A coisa agora vai exigir mais sofisticação,
pois o novo poder se apresenta com uma ideologia estruturada. Para criticar,
antes de tudo é preciso entender o que outro está dizendo.
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