Hotel de luxo, charutos, carro do
Itamaraty, jantar em mansão,
vinhos e compras, muitas compras: assim foi o
animado feriadão de ministros
tribunais superiores
brasileiros em Nova York.
Um homem de terno acende um cigarro embaixo da marquise
do Plaza Athénée, luxuoso hotel a dois quarteirões do Central Park, em Nova
York. Ele está sob o toldo da fachada. O segurança pede, com um “please”, que
ele saia dali e vá para perto de um cinzeiro a céu aberto. É a lei da cidade,
explica. “Oh, you donʼt like me here? You donʼt have to like!”,
diz o fumante, com sotaque brasileiro: “Você não gosta de eu estar aqui?
Não tem que gostar mesmo!”. O concierge
sai do hotel para apaziguar a pequena confusão. Mas, antes que o climão se
resolva, um veículo utilitário para na frente do hotel. É um carro oficial do
Consulado do Brasil, dirigido por um funcionário cujos salários são pagos pelo
contribuinte brasileiro. Dele desembarcam Gilmar Mendes e sua mulher, Guiomar,
acompanhados de uma assessora. “Vamos trabalhar, ministro?”, diz, em português,
o homem que estava fumando, também ele uma figura ilustre no Brasil: é Luís
Felipe Salomão, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda mais
alta corte do país. Enquanto isso, o concierge ajuda a desembarcar as malas do
casal Mendes.
É quinta-feira, dia 1° de novembro de 2018. O ministro do
cigarro, assim como Gilmar, integrava uma comitiva de duas dúzias de pessoas
que passaram quatro dias em Nova York. O motivo da viagem foi profissional:
ministros do Supremo Tribunal Federal e do STJ, além de outros magistrados,
funcionários de tribunais e advogados viajaram para a cidade no feriado de
Finados, a convite, para participar de um seminário organizado pela Fundação
Getúlio Vargas e pela Universidade Columbia, com apoio do jornal Financial
Times, da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos e da CLS Brazil, uma
associação de brasileiros que estudam ou já estudaram na prestigiosa
instituição universitária americana. Além de Gilmar Mendes, ficaram no Plaza
Athénée, cuja diária parte de 500 dólares (cerca de 2 mil reais), o presidente
do STF, Dias Toffoli, e os ministros João Otávio de Noronha, Ricardo Villas
Bôas Cueva, Luis Felipe Salomão e Mauro Campbell Marques, do STJ. Cada ministro
levou um acompanhante ou dois – eram familiares ou assessores.
O único compromisso marcado para a quinta era o jantar de
abertura do evento. Então, menos de meia hora depois da chegada da comitiva, os
brasileiros já saíam. Estavam livres para bater perna. As famílias dos
meritíssimos aproveitaram o veranico que na quinta- feira deixou Nova York com
20°C de temperatura em pleno novembro, quando a média fica abaixo de 10°C.
Mulheres, filhos e filhas e sobrinhos dos ministros saíram do hotel à tarde e
voltaram só à noite – com muitas sacolas, claro. Já na manhã de sexta, o início
do seminário atrasa. O ministro João Otávio de Noronha, presidente do STJ desde
o fim de agosto, chegaria apenas às 9 horas, quando a mesa de que participaria,
marcada para as 8h30, já havia começado.
Enquanto esperam, participantes brasileiros conversam no
fundo do auditório. “Suas compras chegaram no hotel?”, pergunta um deles.
“Chegou quase tudo, falta uma coisinha ou outra. Os vinhos chegaram todos.” O
animado servidor do Judiciário reservou até uma mala especial para transportar
garrafas. “Cheia de compartimento. Não quebra.” Um assistente de ministro conta
que teve de pagar 512 dólares na Alfândega, em viagem recente, porque tinha
comprado três telefones. O outro saca do bolso o seu aparelho e passa para os
interlocutores, que constatam ser um iPhone XS Max, modelo lançado semanas
antes, que custa de 1.099 a 1.449 dólares. “Mas o seu é diferente, né? É coisa
fina”, diz a colega, mostrando o seu iPhone 8, que já há algum tempo deixou de
ser de última geração.
O evento começa. Enquanto um juiz americano fala, um
brasileiro na plateia usa o livreto com a programação do evento e um lápis para
fazer contas. Um outro pede a programação emprestada. Folheia e diz: “Não vai
fazer muita conta, hein?”. O dono do papel ri e se explica: “Tô calculando
quanto vai ter que pagar de imposto. Deu duzentos e poucos [dólares]”. Nas
poltronas distribuídas no pequeno palco, os palestrantes discutem a
judicialização da medicina no país. Dias Toffoli diz que se sente tentado a
começar o discurso saudando menos pessoas, como fez o médico Claudio
Lottenberg, presidente do grupo UnitedHealth, sentado a seu lado. “Imagina se o
médico chega na sala de operação e diz ‘excelentíssimo anestesistaʼ,
‘excelentíssimo instrumentadorʼ. O
paciente já morreu antes de ele terminar.”
Era a segunda vez de Dias Toffoli e de Lottenberg no
evento. A primeira edição do seminário Law and Economics se deu no feriado de
12 de outubro de 2017. E contou com vários dos mesmos participantes: os
ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Villas Bôas Cueva. O
médico-empresário Lottenberg, interessadíssimo no que pensam as excelências
sobre as questões que dizem respeito aos negócios que comanda, também estava lá
na edição do ano passado. Em 2017, a programação completa do evento foi
publicada na internet, incluindo os dois jantares de recepção. Já em 2018, o
site da faculdade de direito de Columbia apenas indicava que “vários juízes”
brasileiros participariam do evento. As palestras preenchem toda a sexta, 2, em
que no Brasil se comemora o Dia de Finados, com pausa de uma hora e meia para
almoçar. Gilmar Mendes é o primeiro a voltar, depois do almoço. O ministro se
senta sozinho na primeira fileira. Logo se forma uma pequena fila de estudantes
e de outros participantes que querem dar uma palavra. Esse tipo de evento,
explica um advogado presente, serve para ensejar uma aproximação com os juízes
supremos do Brasil. “É um networking que não tem preço.”
Se a excursão tivesse um guia, ele seria Sidnei Gonzalez.
Diretor de mercado da FGV, Gonzalez supervisiona a viagem. Enquanto os
ministros palestram, fica em pé no fundo do salão filmando com seu celular.
Gonzalez é figura repetida nesse tipo de evento. Figura muito bem relacionada
nas cortes superiores, ele se encarrega de organizar seminários e congressos
assim de tempos em tempos.
Desde 2010, a FGV e o IDP, de Gilmar Mendes, já
realizaram ao menos onze eventos conjuntos. Gonzalez e Gilmar, por sinal, compraram
apartamentos no mesmo prédio em Lisboa. Em junho, quando O Antagonista publicou
a notícia, o diretor da FGV afirmou que a proximidade dos imóveis, avaliados em
600 mil euros cada um, não passava de coincidência. Sobre seu amigo do Supremo,
ele disse: “A relação com o ministro Gilmar é 98% profissional”. O seminário
termina perto das 20 horas. Na noite de sexta, há só um integrante da comitiva
comendo uma salada de 34 dólares no restaurante do Plaza Athénée. A maioria
está num jantar ali perto.
No número 10 da rua E 62 fica uma mansão construída em
1910. O prédio de três andares tem duas salas — os ornamentos das paredes de
uma delas são em talha dourada, como nos palácios europeus. O valor de mercado
da casa beira os 12 milhões de dólares (cerca de 42 milhões de reais). Até
2015, ela estava registrada em nome de uma offshore. Depois, foi transferida
para outra empresa, cujo nome não é revelado em documentos públicos americanos.
Em sites imobiliários, seu aluguel é estimado em 60 mil reais mensais. É nessa
casa que acontece o jantar da turma que organiza o evento com os convidados
especiais do Judiciário. Três chefs com chapéus de mestre-cuca cuidam da comida
— massas, canapés e uma opção de carne. Uma trupe de garçons abre as garrafas
de vinho, da adega da casa. A música ambiente é ao vivo, tocada por um trio com
violão, violoncelo e percussão.
A comitiva brasileira está em peso no evento. Os últimos
saem às 23h20 e esquecem a porta da frente aberta. Alguns decidem percorrer os
dois quarteirões até o hotel a pé. Outros chamam carros do Uber. Um dos últimos
a sair é o advogado Marcus Vinícius Furtado Coelho, ex-presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), dono de uma requisitada banca de Brasília e amigo do
peito de ministros de tribunais superiores. Três homens se referem ao encontro
noturno como “o jantar do Arnoldo”. Arnoldo é Arnoldo Wald, um dos advogados
tributaristas mais conhecidos (e caros) do país, que estava na platéia do
seminário e fora mencionado em uma das mesas.
O “jantar do Arnoldo” é mencionado como parte imperdível
da programação. Na verdade, imperdíveis são seminários e convenções como esse,
quase sempre em feriados, e quase sempre uma oportunidade para as excelências
confraternizarem com advogados e viajarem com as famílias sem ter que gastar
com passagens e hospedagens – os custos, normalmente, são bancados pelos
organizadores. Um dos presentes disse, pedindo para não ser identificado, que
os promotores de seminários assim “não pagam honorários” pelas palestras, mas
em contrapartida custeiam a viagem.
“É o que a gente chama de benefício colateral”, diz um
funcionário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que, desta vez, não
estava entre os convidados. Uma funcionária do STF confirma que os seminários
são um “plus” para magistrados, familiares e assessores — algo que não é
salário, mas vem embutido com alguns cargos relevantes na estrutura das cortes.
O tal benefício colateral está em todas as esferas do Judiciário. Em 2016,
ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Superior Tribunal de
Justiça participaram de um seminário numa sexta-feira no Hotel Jatiúca, em
Maceió. O evento foi curto. Durou apenas uma sexta, apesar do nome longo: “Os
Efeitos da Desconsideração da Personalidade Jurídica à Luz dos Entendimentos
Consolidados nos Tribunais Superiores”. Em março de 2017, Luiz Fux emendou dois
eventos nos EUA, com três dias de distância um do outro. O ministro participou
de um jantar em sua homenagem oferecido pelo Council of the Americas, em 21 de
março. No dia 24, esteve no seminário “Direito e Economia: Diálogos Brasil x
EUA”, na Faculdade de Direito de Harvard.
Outros encontros acontecem nos dois meses de férias dos
supremos juízes, em janeiro e julho. O seminário “Cidadania em um Mundo de
Transição”, por exemplo, ocorreu em julho e levou uma dúzia de ministros a
Coimbra, em Portugal. O vice-presidente do STJ, Humberto Martins, foi para
palestrar. Do STF, Ricardo Lewandowski e Dias Tofolli estiveram lá para
realizar o que a programação classifica como “intervenções”. O quórum de
ministros foi alto nas férias: a lista de participantes incluía ainda Marco
Aurélio Mello e, do STJ, João Otávio de Noronha, Mauro Campbell, Humberto
Martins, Jorge Mussi, Marco Buzzi, Raul Araújo, Marcelo Navarro, Sebastião
Reis, Benedito Gonçalves e Rogério Schietti.
O voo de volta da maioria dos convidados ilustres
brasileiros está marcado para as 16h30 do domingo. O que não os impede de
aproveitar a última manhã do passeio em Nova York. Ao meio-dia, o ministro Luís
Felipe Salomão sai sozinho do Plaza Athénée de gorro – esfriou e a temperatura
está abaixo dos 10°C. Ele anda três quarteirões, passando pela boutique do
estilista Roberto Cavalli, e entra no Club Macanudo. O “clube” é, na verdade, uma das melhores
charutarias do mundo, e permite a entrada de não-sócios, desde que respeitem a
norma estampada em uma placa dourada na entrada: “temos um código
indumentário”. O ministro passa. Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova York e atual advogado do presidente Donald
Trump, já disse em três entrevistas
que vai ao salão de mogno escuro sempre que pode. Há consumação mínima de
apenas 15 dólares em charutos para cada
pessoa que entra. Mas, evidentemente, a conta costuma passar disso.
Trinta minutos depois do ministro, outros dois
brasileiros entram no Macanudo. Salomão gastou três horas por lá. Ele sai da
charutaria ainda fumando. Anda até o hotel, a duas quadras. Abre, ele mesmo, a
porta para entrar – à diferença dos protocolos de Brasília, em que poderosos
não precisam colocar a mão na maçaneta.
As excelências brasileiras talvez não fossem a maior preocupação do hotel. O
Plaza Athénée havia hasteado a bandeira da Arábia Saudita para uma comitiva bem
mais numerosa que a dos magistrados e seus acompanhantes: membros da elite
saudita haviam reservado a suíte presidencial e alguns dos quartos mais
exclusivos. Estavam na cidade para uma festa de casamento realizada no The
Plaza, outro hotel estrelado a três quarteirões dali.
Salomão não teve oportunidade de se despedir do colega
Mauro Campbell Marques, que saiu para o aeroporto mais cedo do que ele. No
porta-malas da SUV que foi buscar o ministro amazonense do STJ e sua família,
há uma grande sacola com o nome Rebag. A grife, na Madison Avenue, é um brechó
de bolsas de luxo. Uma Chanel modelo Bi Coco Flap, pequena e (pouco) usada,
custa 2.330 dólares na loja. O chofer bate a porta e o carro leva Campbell e
seus acompanhantes para o aeroporto JFK, de onde voariam para o Brasil a tempo
de dar expediente na terça. Acabou o feriado. Agora só restam outras 87 folgas
para os ministros do Judiciário brasileiro – algumas, certamente, com
convescotes semelhantes ao marcado para a semana do Halloween na Big Apple.