Não é prudente subestimar quem tem grande parte dos meios
e recursos políticos...
Quem acompanha a política diariamente deve estar surpreso
com a polêmica que se instalou entre o presidente da Câmara e o presidente da
República. Com a viagem de Jair Bolsonaro a Israel e os contatos de Rodrigo
Maia com ministros do governo, parece haver indícios de uma trégua.
No essencial, a discussão resumia-se à aprovação do
projeto de lei sobre a Previdência, cuja reforma Bolsonaro se comprometera a
fazer e foi entregue à Câmara para deliberação e votação. O problema surgiu
porque o presidente da Casa estranhou e questionou o fato de que o chefe do
Executivo não estaria “articulando” a aprovação do projeto entre os deputados.
Este é o ponto central da controvérsia: a falta de
“articulação” política do governo com os parlamentares. A insistência do presidente
da Câmara nela pareceu estranha, inusitada, descabida como matéria política
para provocar tal discordância.
A quem interessaria a articulação para aprovação? Ao
presidente Bolsonaro, que propôs o projeto. Estava o presidente legalmente
obrigado a fazer a “articulação”? Não. A articulação é um procedimento
político. O presidente da Câmara está legalmente proibido de pautar um projeto
de lei que não foi “articulado” com os deputados? Não, nada o impede.
Se a lei exige do chefe do Executivo que encaminhe seus
projetos ao Legislativo para deliberar e votá-los, Bolsonaro cumpriu sua
obrigação; se ao presidente da Câmara, que recebeu o projeto, cumpre
encaminhá-lo para decisão, e não o fez porque Bolsonaro não iniciou as
“articulações”, então é ele que está errado ao insistir que Bolsonaro faça o
que não está legalmente obrigado a fazer.
Ao assim agir, e de modo insistente, ultrapassa a linha
que separa o Poder Legislativo do Poder Executivo. Como deputado, pode desejar
que o projeto seja aprovado e estar convicto de que para aprová-lo a
“articulação” seja necessária; mas como chefe de uma das Casas do Legislativo
não é recomendável, é estranho, inusitado e descabido.
Por que, então, não dá início à deliberação? Segundo
Maia, não cabe a ele articular a aprovação. Ao usar essa expressão, cometeu um
deslize e revelou seu interesse. O deslize foi admitir a hipótese de que, como
Bolsonaro não iniciava as articulações, se esperava que sobre ele, Maia,
recaísse essa responsabilidade política. Então, Maia denunciou-o à opinião
pública por não estar articulando.
Em resposta, Bolsonaro foi enfático ao dizer que até
aquele momento cumprira seu compromisso político, agiu como manda a
Constituição, fez o que lhe competia: o projeto de reforma da Previdência.
Cabia, então, às Casas legislativas fazer o que lhes competia, deliberar e
votar o projeto do Executivo.
Maia errou ao declarar que não lhe cabe “articular a
aprovação”. Errou porque admitiu que corria esse risco, embora a separação dos
Poderes garanta sua imunização. Errou, também, ao evidenciar que se sentia
ameaçado pelo comportamento de Bolsonaro, ao elaborar o projeto e não iniciar a
“articulação” da sua aprovação.
Sua insistência, contudo, revelava seu interesse
político. Se Bolsonaro assumisse pessoalmente as “articulações”, o ônus de uma
eventual derrota seria do chefe do governo; sem “articular” pessoalmente, esse
ônus recairia em grande medida sobre Maia, já que é o presidente e líder de uma
das Casas do Legislativo e suas prévias declarações favoráveis à aprovação não
deixavam espaço para recuo em caso de derrota.
Bolsonaro fez a jogada conhecida como xeque ao rei:
transferiu a responsabilidade principal pela aprovação ao Legislativo – Maia,
os deputados, os partidos e o Senado. Se o Legislativo não aprovar uma medida
que é considerada a salvação da economia, Bolsonaro terá feito sua parte e os
eleitores que o elegeram, a deles – e Maia, os deputados e os partidos
políticos terão de responder perante o eleitorado.
Em apoio a essa interpretação é oportuno lembrar que nada
deixou Maia mais revoltado do que a afirmação de Bolsonaro de que não aceitava
praticar a velha política da compra de votos, das negociações ilegais e da
corrupção. Ao sugerir um parentesco entre “articulações” e velha política,
Bolsonaro deixou-o numa situação perigosa. Quanto mais insistir na
“articulação”, mais se aproximará da velha política. Se tomar a iniciativa das
“articulações”, será visto como um assessor de Bolsonaro.
Bolsonaro, com a declaração de que fizera a sua parte e
agora compete à Câmara fazer a dela, mantém-se rigorosamente dentro da lei e
deixa para o Legislativo o ônus político de rejeitar o projeto prioritário de
seu governo, que tem apoio da opinião pública e foi legitimado na eleição.
Aprovado o projeto, Bolsonaro terá obtido uma vitória estratégica: a vitória
que facilita outras. Derrotar o projeto não derrota Bolsonaro, derrota o
Legislativo, que não respeitou a vontade das urnas. Bolsonaro terá tempo de
mandato e recursos políticos para se recuperar.
Se dirigirmos nosso olhar para mirar os recursos à
disposição do presidente, percebe-se que o governo, contrário à prática usual,
zelosamente economiza os enormes recursos políticos que o Executivo possui num
país estatista como o Brasil.
Bolsonaro tem sob controle a caneta das nomeações para
muitos milhares de cargos, o talão de cheques das liberações, o sistema
bancário da União, as indicações para conselhos e agências, as necessidades dos
Estados e municípios, a publicidade do governo, que por certo não ficará
limitada às redes sociais, a capilaridades dos órgãos dos ministérios e, last
but not least, sua comunicação pessoal com eleitores, além de poder adotar
decisões simpáticas e populares para reconquistar e remobilizar aqueles que o apoiam.
Não é, pois, prudente subestimar quem tem grande parte
dos meios e recursos políticos que outros presidentes da República também
tinham... sem tê-los gasto.
*PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA, EX-REITOR DA UFRGS, É
CRIADOR E DIRETOR DO SITE POLÍTICA PARA POLÍTICOS