Deprimente. Patético e deprimente. Em finais de outubro
de 2019, os Estados Unidos eliminaram Abu Bakr al-Baghdadi. Se o leitor
consultar a Wikipédia, verá que al-Baghdadi era o líder do Daesh, a organização
terrorista que encantou o mundo com suas decapitações e barbaridades.
Infelizmente, uma parte da mídia relegou esse pormenor
para segundo plano. Eu sei porque vi: estava na terra do Tio Sam e jornais como
o “Washington Post” apresentavam al-Baghdadi como um “austero académico
religioso”. Como Joseph Ratzinger, talvez? Como um Dalai Lama iraquiano?
Eis o processo mental que ocorreu na cabeça dessa gente:
al-Baghdadi foi executado por Trump; Trump é mau; donde, al-Baghdadi só podia
ser bom. O ódio anti-Trump é como certos vírus: instala-se na cabeça do
hospedeiro e reduz a massa encefálica a farofa.
Passaram dois meses. Aconteceu o mesmo com Qassim
Suleimani, o ex-comandante da Força Quds que espalhava o terror pelo Oriente
Médio na tentativa de exportar a teocracia iraniana.
Nos comentários à sua morte, Suleimani passou a ser um
grande general, um herói, até um mártir. Alguns, tomados por excitação
adolescente, falaram de Suleimani como “o Rommel da Pérsia”.
Isso é elogio? Aplaudir Suleimani por ser como um general
nazista? É sério?
Atenção: não está aqui em causa o acerto ou a desacerto
de Donald Trump em matar Suleimani. Embora, aqui entre nós, ainda esteja por
provar que a decisão de Trump dificultou qualquer negociação com Teerã.
Suspeito que, pelo contrário, só com a remoção da
influência maligna do “Rommel da Pérsia” será possível dialogar com os
aiatolas.
A própria retaliação do Irã contra duas bases militares
que abrigam soldados americanos, milimetricamente calculada para não causar
qualquer baixa entre as tropas, parece mais uma peça de teatro para consumo
interno do que propriamente uma vingança digna desse nome.
Mas isso são outros assuntos. Porque o assunto principal
está no padrão: Suleimani foi executado por Trump; Trump é mau; donde,
Suleimani só podia ser bom.
Esse tipo de “raciocínio” (digamos assim) parece uma
repetição do flerte intelectual que a revolução iraniana de 1978-1979 provocou
em certos intelectuais do Ocidente.
O caso de Michel Foucault, muito bem documentado em livro
que recomendo (“Foucault e a Revolução Iraniana”, de Janet Afary e Kevin
Anderson, editado pela É Realizações), é o exemplo máximo da estupidez e da
mendacidade que ataca alguns espíritos.
Em 1978, Foucault viajou para o Irã (duas vezes) para
reportar os avanços da revolução. Sim, o regime autoritário de Reza Pahlavi,
que governava o país há quase 40 anos, não era recomendável.
Mas Foucault foi mais longe e viu na luta dos islâmicos a
promessa de uma nova era – uma nova “espiritualidade política”, enfim, capaz de
salvar o Ocidente da sua decadência intelectual e do seu anti-heroísmo burguês.
Dizer que Foucault se enganou seria um gigantesco
eufemismo. Digamos apenas que, na república teocrática que Foucault aplaudia,
ele seria o primeiro a ser executado por suas preferências sexuais.
Em matéria de liberdades cívicas e pessoais, o Ocidente
decadente e anti-heroico, pelos vistos, ainda era um destino preferível –uma
evidência que até Simone de Beauvoir, em nome das mulheres iranianas que seriam
rapidamente enclausuradas por Khomeini, conseguiu perceber sem esforço.
Passaram quarenta anos. Parece que regredimos outros
quarenta. Para uma parte da inteligência ocidental, criticar Trump e, ao mesmo
tempo, reconhecer Qassim Suleimani como um criminoso de guerra é um exercício
arriscado que pode provocar uma explosão neuronal.
Um erro, gente. Por incrível que pareça, é possível
criticar Trump sem canonizar terroristas. A cabeça aguenta.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade
Católica Portuguesa.