ARTIGO/FÁBIO MEDINA OSÓRIO: QUAL O ALCANCE DO MARCO
PUNITIVO DA MP 784?
A recente Medida Provisória (MP) 784, de 8 de junho de
2017, trouxe diversas e salutares inovações ao processo administrativo
sancionador no âmbito do sistema financeiro e do mercado de capitais. O debate
sobre este tema há de ser focado nos aspectos técnicos envolvendo os avanços no
marco regulatório deste sensível setor. Mecanismos administrativos punitivos e
de solução alternativa de conflitos consagrados na referida Medida Provisória
inspiram-se em técnicas reconhecidas e testadas internacionalmente,
posicionando o País, nesse passo, na companhia de jurisdições que se encontram
na vanguarda do mercado financeiro global. O instrumento da medida provisória
foi utilizado tendo em vista a relevância e a urgência que o assunto suscita em
face de suas peculiaridades no atual contexto social, político, econômico e
jurídico.
Em razão do histórico momento de depuração política por
que passa o País, a recepção inicial das inovações normativas parece ter-se
pautado por certa dose de incompreensão, pelo que se depreende de algumas
críticas lançadas ao novo diploma normativo. Alguns chamaram-no, a meu ver
impropriamente, de "MP da Leniência", ensejando, ainda, uma série de
perplexidades quanto ao seu cabimento e suas consequências. Outros assinalaram
que as matérias nesta MP versadas seriam de direito processual civil e até
produziriam reflexos noutras esferas, tais como a penal. Houve, ainda, quem
sustentasse ser descabido o veículo da medida provisória, dada a ausência de
seus pressupostos.
Este novo arcabouço punitivo oferece, ao contrário do que
se tem afirmado, um conjunto de instrumentos sancionatórios que, na verdade,
aprimora largamente o poder do Banco Central do Brasil (BCB) e da Comissão de
Valores Mobiliários (CVM) para o exercício de suas atribuições. Ocorre que,
desde a fundação dessas entidades fiscalizadoras, havia uma defasagem histórica
para o desempenho de atividades na esfera do poder punitivo estatal. Por certo,
essa Medida Provisória haverá de ser convertida em lei, atendendo reclamos da
sociedade brasileira no tocante aos direitos fundamentais ligados ao próprio
império do Estado Democrático de Direito no que tange às regras e princípios
das normas de direito administrativo sancionador.
A regulação e supervisão dos mercados financeiro e de
capitais no Brasil ostentam aderência internacional às melhores recomendações e
práticas na matéria, mas ainda havia uma pendência fundamental na instância do
direito administrativo sancionador: a ausência de um marco punitivo robusto e
compromissado com determinadas exigências globais. De fato, a efetividade da
atuação do supervisor vai além da capacidade de regular condutas e identificar
infrações, como se sabe, pois é necessário que ele disponha de instrumentos
idôneos para conformar atividades indesejadas e punir, com rigor,
comportamentos desviantes, observando o imperativo constitucional do devido
processo legal. O processo administrativo sancionador, portanto, corresponde a elemento
crítico da atividade de fiscalização e foi isso que a MP 784/2017 procurou
perseguir, em sua essência.
A Medida Provisória veio, em realidade, suprir uma lacuna
na área de atuação do BCB e da CVM. No caso do BCB, por exemplo, em lugar de um
sistema financeiro caracterizado por multas obsoletas e inflexíveis
inabilitações de administradores de instituições supervisionadas, a MP 784
trouxe inovações fundamentais, dentre as quais se podem citar: i) a revisão das
penalidades aplicáveis, adaptando-as às características da infração e da
instituição infratora, com multas de até R$ 2 bilhões (antes, para espanto
geral, de no máximo R$ 250 mil); ii) a realização de atos processuais por meios
eletrônicos, com maior celeridade e segurança, suprindo anterior modelo
claramente defasado; iii) a previsão de medidas coercitivas e acautelatórias,
que permitem cortar pela raiz condutas atentatórias à disciplina de mercado e
deletérias para consumidores de produtos financeiros; iv) a criação de multa
combinatória de até R$100 mil por dia, no caso de descumprimento, pelas
instituições, das determinações do Banco Central, sem prejuízo à instauração de
processo; v) a introdução de meios alternativos para a solução de
controvérsias, incluindo o termo de compromisso e o acordo de leniência, em
linha com a experiência internacional.
Além disso, o novo instrumento normativo dispõe, em
medida provisória, com força de lei, sobre os tipos infracionais
administrativos no âmbito do sistema financeiro, prestigiando o princípio da legalidade
em matéria de direito administrativo sancionador, tema sobre o qual já vínhamos
escrevendo desde longa data, pelo menos desde 1999. Prevê, a seu turno, a
possibilidade de que o Conselho Monetário Nacional e o BCB apenas atualizem
tais normas conforme necessário, em vista da evolução e das inovações de
mercado, na linha das normas sancionadoras em branco e dos conceitos jurídicos
indeterminados carentes de complementação normativa. A MP, assim, conjuga maior
segurança jurídica para as entidades reguladas com o interesse público, numa
normatização financeira dinâmica e eficaz, sem paralisar a administração
pública.
Mas há um ponto fundamental a ressaltar, diria até
central destas minhas reflexões, que está causando uma polêmica desnecessária.
A MP 784/2017 se limita à matéria de infrações eminentemente administrativas,
não adentrando qualquer matéria penal - e não poderia mesmo fazê-lo. Tampouco
trata de atribuições do Ministério Público, como seria a esfera da tutela do
patrimônio público ou da lei anticorrupção. Essa restrição decorre de expressa
vedação imposta pela Constituição (art. 62, §1°, I, "b") à edição de
medidas provisórias em matéria penal ou processual penal. A referida Medida
Provisória não dispõe, igualmente, por proibição constitucional, de matéria de
direito processual civil, como erroneamente se poderia imaginar numa leitura
superficial. O novo diploma normativo trata de direito administrativo
sancionador, cujo regime jurídico é ditado pela aplicação analógica, com
matizes, das regras e princípios de direito penal e processual penal, à luz do
devido processo legal punitivo, consoante doutrina e jurisprudência já
consagrados no Brasil. O que é preciso ficar claro, para evitar confusão, é que
as esferas de atuação do BCB e do Ministério Público são inconfundíveis e
encontram, ambas, assento constitucional. A CVM, de igual modo, tem atribuições
autônomas. Mais do que isso: essas instituições de Estado podem e devem atuar
em parceria, o BCB e a CVM na persecução administrativa e o Ministério Público
na persecução penal, sem prejuízo de outras atribuições como a tutela da
probidade administrativa e empresarial.
Outro tópico, que tem sido muito comentado nos meios de
comunicação sobre a MP 784, é o da celebração de termos de compromisso e
acordos de leniência nos mesmos moldes do que ocorre hoje com o CADE. Todavia,
nem de longe essa questão é a mais importante neste novo marco punitivo, embora
seja de interesse público que haja essa possibilidade, que deve ser ainda
objeto de regulamentação pelas instituições fiscalizadoras. E, de fato, a
perspectiva desses acordos é uma janela estratégica essencial ao chamado
direito consensual para a produção de provas em busca de novos caminhos no
enfrentamento dos ilícitos organizados.
À luz das inovações da MP 784/2017, o termo de
compromisso, uma espécie de meio alternativo que pode dispensar a instauração
do processo administrativo, é uma forma ágil para cessação da prática ilícita,
mediante iniciativa do infrator, podendo ou não ser aceita a proposta. Já o
acordo de leniência poderá ser firmado com pessoas físicas ou jurídicas que
confessarem a prática de infração, podendo ter como benefícios a extinção da
punibilidade ou redução de um a dois terços da penalidade aplicável, mediante
efetiva, plena e permanente colaboração para a apuração dos fatos. A extinção
da punibilidade depende da conversão em lei e da participação do Ministério
Público com atribuição na matéria. Trata-se de projeção do direito consensual,
com aplicação efetiva de sanção premial pela autoridade pública, sem coartar a
prerrogativa de outras instituições de controle. O infrator, ao confessar
infrações, projeta consequências noutras esferas e não impede a autonomia de
outras instituições.
Esses acordos previstos na MP 784/2017 têm por objeto
exclusivamente infrações administrativas da alçada dos supervisores bancário e
do mercado de capitais, em nada interferindo com as funções essenciais e
inafastáveis do Ministério Público (repita-se: a MP 784 não tratou de matéria
penal por proibição constitucional, e tampouco interferiu noutras atribuições
legais e constitucionais do Ministério Público). E não interfere sobretudo
porque continuarão as autoridades administrativas obrigadas por lei a comunicar
ao Ministério Público os indícios de crimes (ou de improbidade) de que tenham
conhecimento. Essa obrigação, que consta em lei (Lei Complementar 105/2001,
art. 9º), não é afetada por eventual (e excepcionalíssima) imposição de sigilo
sobre termos de compromisso, conforme previsto no art. 14 da MP (a regra geral
é a ampla publicidade). Tampouco o dever de comunicação de indícios de crime
(ou de improbidade) ao Ministério Público é afastado pela possibilidade, também
excepcional, de segredo sobre propostas de acordo de leniência, conforme o art.
31 da MP. Repare-se: o sigilo somente poderá alcançar as propostas, não os
acordos em si mesmos.
Veja-se que os eventuais acordos firmados pelo BCB ou
CVM, nos termos da MP 784/2017, não impedem a apuração de crimes ou atos de
improbidade, cuja persecução continua incumbindo ao Ministério Público. Não há
base racional para supor que um acordo firmado por uma autoridade administrativa,
tendo por objeto um ilícito igualmente administrativo, sem a participação do
Ministério Público, possa, de qualquer forma, restringir sua ampla capacidade
investigativa e persecutória, com toda a autonomia que a Constituição e as leis
lhe atribuem.
Outra questão de especial importância a ser discutida é a
participação do Ministério Público na própria celebração do acordo de leniência
que o BCB ou a CVM vierem a firmar com as instituições sob sua jurisdição
administrativa, quando os fatos objeto do acordo de leniência revelarem
indícios da prática dos crimes de ação penal pública ou de improbidade
administrativa ou empresarial. É recomendável essa parceria entre as
autoridades administrativas e o Ministério Público, e até mesmo com outras
autoridades (TCU, por exemplo), mas, na hipótese aqui aventada de ilícitos
administrativos e penais, não seria possível que a MP 784/2017 condicionasse a
celebração do acordo à manifestação favorável do Ministério Público. Consoante
já mencionado, a Constituição veda que medidas provisórias disponham sobre
matéria penal. No entanto, o Congresso Nacional pode, por meio de emendas, no
projeto de lei de conversão, modificar a MP 784 e estabelecer a anuência prévia
ministerial ao acordo de leniência, o que seria fundamental para a persecução
estatal aos ilícitos e delitos financeiros, para que um acordo administrativo
pudesse gerar efeitos na esfera penal ou noutra seara judicial.
O que aqui sustento é que nem mesmo a versão original da
MP 784/2017 impede a desejada coordenação de atividades entre o BCB, a CVM e o
Ministério Público, embora seja ideal sua modificação por emenda parlamentar.
As atuações conjuntas aumentam a capacidade de coleta e processamento de
informações no campo da inteligência punitiva, que se mostra especialmente
relevante no contexto de crescente complexidade e refinamento da atuação de
organizações criminosas, inclusive utilizando instituições financeiras e do
mundo empresarial. A separação das esferas administrativa e criminal não
inviabiliza, mas antes recomenda a realização de aprimoramentos normativos, no
sentido de se coordenarem as atuações do BCB, da CVM e do Ministério Público,
em conjunto com outras instituições, em matéria de prevenção e combate a
ilícitos, mediante a introdução de preceitos adequados no texto legal -
idealmente, promovendo-se alterações pelos parlamentares no processo de
conversão da MP em lei, cujo trâmite já se iniciou, tendo recebido mais de 90
emendas.
Muito se falou também sobre as razões que motivaram a
edição de uma medida provisória para se inaugurar um novo arcabouço sancionador
no âmbito do sistema financeiro nacional. A legislação até então em vigor
remontava aos idos de 1964 e 1976, sendo, portanto, defasada, o que compromete
a efetiva capacidade punitiva do BC e da CVM. Além disso, ao estabelecer as
condutas dos tipos administrativos em instrumento com força de lei, a norma
confere maior segurança jurídica à atuação estatal do BCB e da CVM, questão que
já vinha sendo enfrentada pela jurisprudência do STJ e pela doutrina. Esses
argumentos aderem ao primeiro requisito para a edição de uma medida provisória,
o da relevância. E quanto ao requisito da urgência, que gerou maior polêmica? O
Brasil, ainda em 2010, assumiu, no âmbito do G-20, compromisso para alteração de
seu marco legal sancionador afeto ao sistema financeiro e, em julho próximo,
será feita a avaliação da supervisão bancária brasileira pelo FMI e pelo Banco
Mundial, por meio do Financial Sector Assessment Program (FSAP). Assim,
mostrou-se premente a edição de norma com força de lei, conforme a exposição de
motivos da MP 784/2017. Essa não é uma MP da leniência, mas uma MP que inaugura
disciplina de direito administrativo sancionador compromissado com princípio da
legalidade no Brasil. As normas punitivas mais gravosas, é bom lembrar, não
poderão retroagir para alcançar ilícitos já consumados, dada a incidência, por
simetria, dos princípios penais ao espectro do direito administrativo
sancionador.
Para finalizar, cabe ressaltar que, num acordo de
leniência, o Ministério Público pode ter assento, caso as partes assim desejem,
para dispor sobre ações de improbidade administrativa ou empresarial, conforme
precedentes já reconhecidos na própria Operação Lava Jato, ao menos em nível de
diálogo interinstitucional. No tocante a delitos financeiros que envolvam
organizações criminosas, em geral, acordos com pessoas físicas são travados por
meio do instrumento da delação premiada, o qual pode ser absorvido no âmbito de
acordo de leniência. A MP 784/2017, que não pôde tocar em matéria penal por
razões constitucionais já declinadas, insere-se no microssistema de direito
sancionador e não deve ser compreendida isoladamente, muito menos o novo marco
normativo tratou apenas de leniência, abarcando, como já visto, toda uma nova
disciplina punitiva no âmbito dos sistema financeiro e do mercado de capitais.
O alcance do novo marco sancionatório da MP 784 dependerá
da jurisprudência e da doutrina, que terão funções extremamente relevantes na
consolidação da qualidade desse novo modelo de direito administrativo
sancionador e de processo público punitivo. Dependerá, ainda, do Parlamento,
por ocasião da conversão da MP em lei. Mas é certo que um passo inicial
decisivo foi dado, rompendo-se modelo antigo baseado em instrumentos normativos
com força coercitiva precária. O Brasil tem a oportunidade de consagrar
definitivamente em seu ordenamento jurídico o que há de mais avançado em termos
de processo administrativo sancionador e métodos de resolução alternativa de
controvérsias no âmbito do sistema financeiro e mercado de capitais. O que se
almeja é uma discussão técnica, seja no parlamento, seja na sociedade civil e
na mídia. Nosso País não vive apenas de escândalos e de crise política. Também
há algumas notícias boas, sobretudo oriundas do Ministério da Fazenda.
Fábio Medina Osório é ex-ministro da Advocacia-Geral da
União, presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado
(IIEDE) e doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de
Madri