Defensores de Dilma dizem que o impeachment representaria
a reação dos ‘brancos de olhos azuis’ que estariam querendo ‘ir à forra’ após
uma década de avanços sociais
O Brasil é um país com grandes diferenças sociais,
refletidas numa série de vícios. Vou exemplificar com algo que aconteceu comigo
diversas vezes: ao me aproximar, no ambiente de trabalho, de um bebedouro para
beber um copo de água, a pessoa do serviço de apoio e limpeza que se encontrava
no local se afastou, retirando o copo antes de enchê-lo, cedendo a vez e
dizendo “pode passar, doutor”.
A cena sempre me choca e seria inimaginável na Europa,
por exemplo. Não adianta insistir para que a pessoa continue enchendo o copo,
ser amável etc.: na posição subalterna em que a pessoa se coloca, a primazia é
dos “doutores”. E não é a cor da pele que faz a diferença, pelo fato de, mais
de uma vez, a pessoa em questão e eu sermos ambos brancos.
A receita para superar a chaga da divisão social do país
é o binômio de crescimento e educação. Tomem-se as medidas para que o país
cresça a um bom ritmo durante 50 anos e ofereça-se uma boa escola pública aos
filhos das pessoas mais humildes para que elas possam ingressar na universidade
e, cedo ou tarde, os filhos ou os netos de quem vai beber água e de quem cede a
vez se colocando em posição inferior terão um destino parecido.
A pior forma de encarar essa questão é estimular o
ressentimento. Ao invés de fomentar a integração, o ressentimento é
profundamente divisionista. Quando se estimula uma atitude de hostilidade, no
lugar de mostrar para as pessoas que não há razão nenhuma para que os
indivíduos recebam tratamentos diferentes em uma série de âmbitos, o ovo da
serpente está sendo chocado no interior da sociedade.
Isto se relaciona com a esfera da política. Os defensores
do governo Dilma Rousseff, em 2015 e nos primeiros meses do ano em curso,
passaram a martelar o argumento de que o impeachment representaria a reação dos
“brancos de olhos azuis” que estariam querendo “ir à forra” depois de uma
década de avanços sociais.
Em mais de uma oportunidade, foi mencionado pelas
autoridades da época o argumento infame acerca do suposto desconforto de parte
da sociedade com o fato de que “pela primeira vez, temos pobres andando de
avião”.
Trata-se de uma retórica abjeta. O fato de existir essa
postura em algumas pessoas não autoriza a fazer generalizações. Convido o
leitor à seguinte reflexão: no seu círculo de amigos que defenderam a aprovação
do impeachment, que proporção de indivíduos reclamou ao longo dos últimos dez
ou 15 anos da ascensão social dos mais pobres?
Provavelmente, a maioria dos leitores deste artigo não
pertence aos estratos inferiores da população. Duvido que, no ambiente de
relacionamento social desses leitores — cuja maioria, estatisticamente, suponho
ter sido a favor da saída da presidente Dilma — haja um grupo representativo
que estivesse irritado com o fato de “pobre andar de avião”.
Na esteira desse tipo de manifestações, há um conjunto de
ressentimentos que perpassam tais atitudes, indo desde a ideia de que pessoas
com maiores recursos são “culpadas”, até a noção de que roubar rico não chega a
ser condenável do ponto de vista moral.
Talvez poucos espectadores tenham parado para pensar no
significado simbólico da imagem, mas num filme brasileiro muito aclamado
recentemente por representar a ascensão social de uma nova classe, uma das
cenas mais festejadas pelo público — e construída para gerar essa empatia com
quem assiste — é aquela em que a funcionária de uma casa, ao “pedir as contas”
e se mudar da residência dos “patrões”, leva uma travessa com ela para sua nova
casa.
De fato, a cena tem sua graça cênica, mas objetivamente
trata-se, pura e simplesmente, de um roubo, travestido pelo sentimento de
“justiça” de que é feito contra uma família “rica”.
A ideia de que Dilma Rousseff foi afastada porque os
“brancos de olhos azuis” foram às ruas ano passado incomodados com a ascensão
dos mais pobres é moralmente ofensiva, além de economicamente indigente.
A suposição de que há um antagonismo inevitável de
interesses é própria de uma interpretação obtusa do funcionamento da economia.
Esta não é um jogo de soma zero, onde para alguém ganhar outro precisa perder.
O progresso econômico pode se encarregar de gerar uma
melhora de bem-estar para todos os grupos — e progresso foi, justamente, o que
não tivemos em 2015 e 2016, quando a economia encolheu.
Fabio Giambiagi é economista