Desembargador João Pedro Gebran Neto afirma que decisão
do tribunal de rejeitar recurso de Lula não afronta o Supremo Tribunal Federal
e que debate sobre prisão em segunda instância está contaminado pelo momento
político
Entrevista a Ricardo Brandt e Fausto Macedo, Estadão.
“O TRF-4 não afrontou o STF.” A afirmação do
desembargador federal João Pedro Gebran Neto, o relator em segunda instância da
Operação Lava Jato, no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, busca um fim
para o que ele enxerga como falsa polêmica: a de que houve um enfrentamento ao
Supremo Tribunal Federal na decisão que ampliou a condenação do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, de 12
para 17 anos de prisão no processo do sítio de Atibaia.
A defesa de Lula tinha pedido nulidade da condenação
porque a 13.ª Vara de Curitiba (primeira instância) não havia aplicado prazo
distinto para delatores e delatados entregarem suas alegações finais no
processo, conforme decisão recente do STF, em outra ação penal da Lava Jato. “O
que se fez é aplicar o entendido do Supremo, em conformidade com os precedentes
da existência e demonstração de prejuízo”, afirma.
Pouco afeito a entrevistas, Gebran Neto conversou com o
Estadão por e-mail dois dias após a nova condenação de Lula, defendeu a execução
da pena em segunda instância como uma medida “civilizatória”, enalteceu os
avanços pós Lava Jato no combate à corrupção e à impunidade no Brasil e rebateu
acusações de que os julgamentos da operação têm conotação política.
Leia a íntegra da entrevista.
O TRF-4 ‘afrontou’, como disse a defesa de Lula, o
Supremo ao negar a tese de regra geral retroativa defendida por réus, com base
em entendimento da Corte sobre prazo diferenciado para delatores e delatados
nos processos penais?
Com certeza o TRF-4 não afrontou o STF e nunca teve
qualquer interesse em polemizar sobre o tema. O que se fez, e me parece claro
nas manifestações e votos, é aplicar o entendido do STF, em conformidade com os
precedentes da existência e demonstração de prejuízo. Aliás, o STF estava
modulando os efeitos de sua decisão, mas não concluiu o julgamento. Assim,
aplicou-se o entendimento em consonância com os precedentes históricos, seja no
tocante à eficácia para o futuro das novas normas processuais, seja no tocante
à ausência de prejuízo. De momento, não há decisão em repercussão geral ou
mesmo efeito suspensivo concedido nos processos em trâmite na Suprema Corte,
cabendo aos tribunais inferiores examinarem o caso concreto.
O julgamento da apelação sobre o caso do sítio de Atibaia
foi político, como criticaram as defesas dos réus?
Em verdade, nenhum julgamento relacionado à Operação Lava
Jato, como de resto nenhum outro processo, tem conotação política. Tampouco há
contaminação ideológica dos julgadores. Como se procurou destacar nos votos,
somente os fatos imputados aos réus são objeto do julgamento, segundo as provas
existentes nos autos. Magistrados não julgam pessoas e suas histórias de vida,
mas condutas específicas, tudo conforme o acervo probatório. Aliás, em meu voto
cito precedente da ministra Cármen Lúcia fazendo exatamente essa referência. A
fixação de tese de um papel do Judiciário de antagonismo aos réus é bastante
antiga, mas neste caso é seguramente falaciosa.
Como vê as sucessivas tentativas das defesas de réus da
Lava Jato de atribuírem suspeição aos juízes do caso? Tanto o senhor, como o
desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores, o ex-juiz Sérgio Moro e a juíza
Gabriela Hardt foram alvo de questionamentos…
Do ponto de vista jurídico processual, acho absolutamente
natural que os réus utilizem-se dos meios de defesas que entenderem
pertinentes. Assim, não há qualquer estranhamento quando alguém recorre ou
interpõe medidas como exceções de competência ou mesmo de suspeição. Aliás, no
âmbito da Lava Jato, o tribunal já julgou 45 processos de mérito e mais de 900
incidentes, inclusive as exceções de suspeição, cabendo ao Poder Judiciário
tomar as decisões de acordo com os fatos, com as provas e com o ordenamento
jurídico.
De outro lado, vejo que há uma tentativa intensa de
imputar aos magistrados uma atuação política ou ideologizada, como se
estivessem a serviço de alguém ou atuando com objetivos outros, que não
simplesmente realizar seu ofício da melhor forma possível. E isso é um equívoco
e um desserviço para a sociedade. Tentar arranhar qualquer dos pilares do
Estado não auxilia na construção de um País melhor. Precisamos de boas,
respeitadas e valorizadas instituições.
Como viu a mudança de entendimento do Supremo em relação
à execução provisória da pena em segundo grau e quais suas convicções sobre o
tema?
Minha compreensão sobre o tema é antiga, antecedendo
inclusive aos julgamentos do STF, como é possível ver nos votos que proferi ao
longo dos anos, reconhecendo a possibilidade da execução da pena após o
julgamento em segunda instância. Essa antecipação do paradigma no TRF-4 (o
tribunal redigiu em 2016 uma súmula sobre a aplicabilidade da prisão em segundo
grau) ocorreu porque, naquele tempo, era visível a mudança que o STF faria em
sua jurisprudência. Todavia, recentemente, a Suprema Corte voltou a firmar
jurisprudência em desfavor da execução após julgamento em segundo grau.
Compreende-se e respeita-se. Há argumentos bons e fortes em favor da tese
recentemente chancelada pelo Supremo. Mas, segundo compreendo, os fundamentos
jurídicos e sociais em sentido contrário são igualmente bons e fortes.
Na minha perspectiva de edificação de uma sociedade mais
justa e segura, visando acabar com as graves mazelas da violência, da
insegurança, da impunidade de qualquer tipo de criminalidade, inclusive, dentre
as mais eficazes medidas talvez esteja a execução da pena, após o julgamento em
segundo grau. E os recentes debates no Congresso Nacional sobre o tema
certamente recolocarão o Brasil novamente nesse caminho, em sintonia com a
grande maioria dos países desenvolvidos do mundo.
Essa é uma perspectiva civilizatória, onde a pena serve
como prevenção especial, punindo as pessoas pelos crimes que praticaram,
mediante penas justas impostas, após o devido processo legal, mas também como
meio de prevenção geral, onde a sociedade possa visualizar que às condutas
criminosas são impostas sanções, em tempo e modo razoáveis. E isso em nada
desnatura o objetivo de reeducação do condenado que a sanção penal também deve
ter. Aliás, talvez evite que tenhamos tantas pessoas respondendo a processos
penais, ou mesmo presas. Recordo os estudos de Gary Becker, vencedor do Prêmio
Nobel de Economia de 1992, que apontou que a probabilidade de detenção e de
aprisionamento como elementos que influenciam o criminoso na tomada de decisão.
Quanto maior a impunidade, maior o estímulo para a prática de ilícitos,
principalmente quando os ganhos são muito elevados. Inconscientemente, ou, às
vezes, até mesmo conscientemente, é assim que são tomadas decisões de cometer,
ou não, crimes, ponderando benefícios e custos, como destacado em recente
artigo de Érica Gorga, “Criminalidade e prisão em segunda instância”.
Gebran Neto durante sessão no TRF-4, em Porto Alegre.
Foto: Divulgação/TRF-4
O direito penal não pode servir apenas para punir os
hipossuficientes, cujas condenações, por vezes, transitam em julgado no
primeiro grau de jurisdição. Mas, sobre esse aspecto, não se vê manifestações
tão inflamadas, servindo os hipossuficientes apenas como estatística para
fortalecer o discurso dos mais favorecidos. Tampouco serve o Direto Penal para
colocar o rótulo de condenado em quem praticou crime, sem que haja o
cumprimento da correspondente sanção. Os acusados têm direitos fundamentais,
inclusive o direito a duplo grau de jurisdição, mas a sociedade igualmente tem
direitos fundamentais, dentre eles a segurança e a proteção eficiente contra
aqueles que cometem crimes. O direito fundamental à razoável duração do
processo deve ser atendido tanto no processo civil, como no processo penal, e,
em qualquer dos casos, é um direito fundamental que vale para ambas as partes,
no processo penal, sociedade e réus.
A vedação à execução da pena após o trânsito em julgado
acaba por fragilizar em demasia várias dessas perspectivas, criando direito a
quatro graus de jurisdição, num processo penal que já é moroso e que tramita
perante um Poder Judiciário sobrecarregado com quase 80 milhões de processos,
segundo o Conselho Nacional de Justiça. São vários os exemplos de fracasso pela
morosidade, como apontado por vários ministros do Supremo Tribunal Federal no
recente julgamento sobre o início da execução da pena após o julgamento em
segundo grau.
Esse debate, hoje no Brasil, talvez esteja contaminado
pelo momento político, embora devesse ter uma visão de Estado.
A Lava Jato marca uma mudança na Justiça criminal
brasileira?
Não tenho dúvida que a Operação Lava Jato é um marco
importante, representando uma viragem paradigmática na jurisdição criminal
brasileira, como já fora antes a Ação Penal 470 do Mensalão. Mas isso nunca foi
um objetivo, nem mesmo algo pensado para ser assim. É uma consequência dos
fatos. Vejo como algo crescente, que começou com investigações ordinárias e
ganhou desdobramentos de diversas ordens, mas inimagináveis. Creio que o Brasil
já teve outras oportunidades em desvelar sistemas de corrupção sistêmica, e
isso gerou uma curva de aprendizagem que, somada a algumas mudanças
legislativas, como a lei de combate às organizações criminosas e a
possibilidade de colaboração premiada negociada, para ficar num exemplo, bem
como uma nova postura do Poder Judiciário nas suas diversas instâncias,
propiciou uma evolução significativa no combate à corrupção e à impunidade.
A Lava Jato e todo movimento anticorrupção e
anti-impunidade gerado a partir dela vivem um momento de contraofensiva na
avaliação do sr.?
Não tenho essa percepção. Como espectador e cidadão, vejo
que nos últimos seis anos o sistema judicial brasileiro avançou muito no
combate à corrupção e à impunidade, e isso não se resume apenas à Lava Jato,
muito menos aos processos com origem em Curitiba. Temos diversos desdobramentos
da Lava Jato em outras regiões, que igualmente recebem esse nome, mas que
tratam de fatos distintos, como os processos em tramitação no Rio de Janeiro,
em Brasília, em São Paulo e nos Tribunais Superiores. Para além desses, também há
iniciativas importantes na Justiça Estadual de vários Estados no combate à
corrupção e à impunidade. São novos ventos de esperança na construção de um
País mais justo e mais probo. E, nessa perspectiva de combate à ilicitude,
várias conquistas foram atingidas, com a condenação e prisão de pessoas que até
então se achavam acima da lei, e a recuperação de uma parcela significativa dos
recursos desviados. Estes avanços jamais retrocederão.
Porém, é absolutamente natural que aqueles que se sentem
atingidos pelo combate à impunidade, ou que acreditem que possam vir a ser
atingidos, tentem refrear esse movimento. Isto já ocorreu em outros países que
vivenciaram momentos semelhantes. Caberá ao Estado brasileiro e à sociedade de
modo mais específico posicionarem-se em favor dos elevados valores
constitucionais, tais como a democracia, a liberdade, a moralidade
administrativa, a edificação de uma sociedade mais justa e humana, fundada na
pluralidade de ideias e na igualdade de direitos. Estou convicto de que, desde a
Constituição Federal de 1988, caminhamos nesse sentido. Talvez mais devagar do
que gostaríamos ou mesmo por caminhos erráticos, mas certamente avançamos muito
nos últimos 30 anos.
A advertência dada ao procurador Deltan Dallagnol, a
aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade, o esvaziamento do projeto
anticorrupção do ministro Sérgio Moro no Congresso foram derrotas recentes. É a
pior fase desses seis anos de Lava Jato?
Cada episódio tem seu foro adequado de discussão, mas não
faço essa avaliação de pior ou melhor momento da Lava Jato. Como magistrado,
defendo minhas convicções com aquilo que vejo no processo. Porém, após quase
seis anos, vejo com naturalidade a existência de avanços e retrocessos no
combate à impunidade e à corrupção. Certamente teremos diversos outros avanços
e alguns retrocessos. Outras vezes correções de rumos serão necessárias.
De toda forma, vejo que nesse período o Brasil demonstrou
muita maturidade, com solidez das instituições, com liberdades públicas
respeitadas e ordem social. Desde 1988 vivemos num Estado que ainda é desigual
e injusto, mas que se aperfeiçoa na busca de um lugar ao sol. Acredito que
avançamos num bom caminho e as dificuldades são próprias da democracia e da
multiplicidade de opiniões e interesses. Os aspectos positivos devem ser
extremamente valorizados. E é exatamente isso que passará para a história: uma
sociedade que passou por grandes modificações no cenário político, social e
jurídico, a demonstrar que o jovem País começa a atingir a idade adulta, enfrentando
seus próprios problemas e dramas, mas sem convulsões, no seu mais longo período
de democracia e paz.