Texto publicado por escritor americano mexe com os brios
do brasileiro e põe em questão a relação dúbia que o brasileiro tem com o olhar
estrangeiro e a própria autoimagem
Pouca gente fala tão mal do Brasil quanto o próprio
brasileiro, ou ao menos uma determinada parcela bem identificável da sociedade
brasileira – da classe média para cima, digamos. Mas se alguém o fizer – e não
for um brasileiro, prepare-se para a indignação que não se fará esperar, ainda
mais nesta época rápida de redes sociais.
Foi o que fez Mark Manson, um escritor americano. Noivo
de uma brasileira e com planos de passar mais tempo no país, ele publicou, no
dia 11 de fevereiro, em sua página pessoal, uma longa Carta Aberta ao Brasil
(que pode ser lida no endereço markmanson.net/brazil_pt), na qual apontava
o principal responsável pelos problemas recorrentes do país: o próprio
brasileiro.
Leia mais:
“O problema é a cultura. São as crenças e a mentalidade
que fazem parte da fundação do país e são responsáveis pela forma com que os
brasileiros escolhem viver as suas vidas e construir uma sociedade. O problema
é tudo aquilo que você e todo mundo a sua volta decidiu aceitar como parte de
‘ser brasileiro’ mesmo que isso não esteja certo.”, diz Manson em um dos
trechos da postagem, que aponta também que os brasileiros são egoístas,
vaidosos, bem pouco inclinados ao altruísmo pelo bem comum, embora leais aos
amigos próximos.
As reações não tardaram. Muitas delas, como seria de se
esperar, negativas. Já no primeiro dia intelectuais, pesquisadores e pessoas
comuns manifestaram em suas redes sociais indignação pelo “texto do gringo”.
Mas, e aqui está talvez o ponto que provoca reflexão, muitos o compartilharam
com a aprovação e o entusiasmo de uma verdadeira declaração oficial das Nações
Unidas. Para alguns, este é o verdadeiro mistério.
– É um texto fraco, que levanta até algumas questões
interessantes, mas não se aprofunda. Para mim, a grande questão é por que
a classe média, de modo geral, se identificou tanto com esse texto e concordou
com ele de modo tão apaixonado. O furor provocado por esse texto é, pra mim, o
verdadeiro objeto de interesse desse artigo – diz Ronaldo Helal, professor de
Comunicação e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Para além de qualquer consideração sobre a qualidade do
texto de Manson, ou mesmo suas qualificações para realizar uma análise de um
país estrangeiro, o que parece ter acontecido é que seu olhar de fora talvez
tenha se conectado a um impulso que constitui parte do imaginário nacional e
que vem à tona de tempos em tempos, principalmente em períodos de crise: a
suspeita melancólica de que o país está fadado ao fracasso, não importa que
mudanças ocorram na política, na economia e na sociedade.
Não é um tema novo. De tempos em tempos, uma pesquisa
qualquer encomendada por instituto de pesquisa ou por algum veículo de
comunicação devolve uma imagem incômoda (e em muitos casos distorcida) de seu
país e de sua comunidade. Uma delas, realizada pela revista Superinteressante,
em 1991, por exemplo, entrevistou 1,2 mil pessoas em seis grandes capitais para
chegar à assombrosa conclusão de que um em cada dois desses entrevistados não
via nada de bom no Brasil. Outra, realizada em 2000 pelo Instituto Datafolha,
registrava que a primeira ideia associada ao Brasil por mais da metade dos
consultados era negativas: crise, pobreza, má administração, violência e
desemprego, entre outras. São essas as personagens que veem nas palavras de
Manson uma confirmação de seu próprio pensamento sobre um país com crises
periódicas e casos sucessivos de corrupção.
Outro ponto interessante a se refletir quando se pondera
a reação despertada pela postagem de Manson está o próprio histórico brasileiro
com a opinião estrangeira, mesmo quando ela de algum modo acerta, ainda que de
modo superficial, em pontos válidos dos problemas nacionais. Embora muitos se
sintam insultados, outros veem no olhar de um estrangeiro, qualquer
estrangeiro, a legitimidade que faltava para concluir que o Brasil foi à breca.
Um exemplo é o da frase “O Brasil não é um país sério”, citada há gerações como
uma declaração derrisória proferida pelo presidente-herói francês Charles De
Gaulle nos anos 1960. Há de querer dizer algo o fato de que De Gaulle nunca
disse tal coisa, ele foi na verdade o destinatário da frase, formulada por
um... brasileiro, o diplomata Carlos Alves de Souza Filho, embaixador do Brasil
na França entre 1956 e 1964. O fato de que a diatribe passou ao anedotário
nacional atribuída ao presidente estrangeiro é um indício dessa relação dúbia,
de concordância e de revolta que muitos têm com gringos que emitem uma opinião
sobre o Brasil.
Os tópicos levantados por Manson não são necessariamente
novos. Alguns deles, ao contrário, estão no coração do pensamento social
brasileiro. A lealdade à tribo antes que ao conceito imaterial de Estado já foi
diagnosticada no muitas vezes mal compreendido “brasileiro cordial”
identificado por Sérgio Buarque de Holanda em seu Raízes do Brasil. O “cordial”
aqui não é o amistoso, acepção que se tornou comum para o termo, e sim aquele
que é regido pelas forças “do coração” (“corda”, em latim): o resultado é o
estabelecimento da família como núcleo primário da cidadania e da noção de
disponibilidade do público para o interesse privado.
Roberto da Matta, por sua vez, já definiu o “jeitinho” e
o “você sabe com quem está falando?” comuns na sociedade brasileira como
“como duas pernas de uma mesma ficção jurídica”, a saber, a de que a lei é
justa, alcança a todos e todos a cumprem. O “jeitinho” nasce com o exemplo de
cima: ao notar que o aristocrata não está sujeito ao mesmo rigor, o “do andar
de baixo” desenvolve artifícios para ter, por baixo dos panos, a mesma relação
com a lei geral, ou seja, escapar dela quando for possível.
Em seu recente best-seller A Cabeça do Brasileiro
(Record, 2007), o sociólogo Alberto Carlos Almeida testa essas formulações em
uma pesquisa ampla e chega a uma radiografia do modo de pensar nacional,
apontando a educação como o grande divisor entre “dois Brasis”. Na contramão do
discurso que culpa exclusivamente a elite, Almeida conclui que a ampla fatia de
57% de brasileiros que cursou só até o ensino fundamental tem um perfil bem
delineado: é um personagem que apoia o jeitinho, valoriza a hierarquia e o
patrimônio, é desconfiado, contrário ao liberalismo no comportamento, a favor
da censura e tolerante com a corrupção. Se é assim, o que pode ter
provocado tal identificação, como se o texto apontasse algo novo, ou tal
indignação, como se o texto estivesse errado do início ao fim? Talvez a
superficialidade de era da internet.
– O brasileiro tem a mania de falar que todo mundo é
corrupto, menos quem fala. O texto dele toca em uns pontos interessantes, mas
não se aprofunda, e as pessoas aceitam como revelação – comenta Ronaldo Helal.