Artigo, Lya Luft, Zero Hora - Assédio, que cansaço

Um raivoso movimento de mulheres brandindo dedos, braços, documentos e acusações afirma que os homens, em princípio, não prestam

Periodicamente, surgem os temas do momento, da moda ou da neura, as obsessões ou as catarses. Às vezes, movimentos mais do que justos.

Nestas semanas, fala-se obsessivamente de assédio: aqui, na Europa, nos Estados Unidos sobretudo, numa erupção vulcânica, às vezes cheirando a enxofre, de acusações justas, invenções cruéis, atitudes ridículas. Moralismo é farisaísmo e hipocrisia numa bela mistura. Prefiro falar em decência natural, e respeito óbvio.

Na Inglaterra, a senhora jornalista de meia-idade de repente lembra: "O ministro tal botou a mão no meu joelho há trinta anos". Vai a público, denuncia. Imediatamente, o ministro, importantíssimo aliás, declara que, sim, vagamente recorda, é culpado, e... se demite. Nos Estados Unidos, mais fanáticos nesses assuntos, um já idoso figurão do cinema e da televisão é acusado por uma das candidatas a emprego, que aceitou entrar com ele no quarto de hotel, e ficou revoltadíssima quando a digna figura lhe exigiu carinhos em troca de aumento ou emprego, ou seja o que for. Somos mesmo tão ingênuas assim, neste mundo, nesse meio? Não duvido da veracidade de muitas dessas acusações. Nem todas: dificilmente, uma mocinha linda imagina que encontrar-se a sós com um possível chefe – nesse meio – seja um piquenique com Coca-Cola zero e sanduíche de atum. O que, evidentemente, não justifica a suinice do troglodita.

Sou contra qualquer violência, física ou verbal, e não só de homens contra mulheres. Também sou contra mal-entendidos irresponsáveis que podem ter consequências graves.
No caso, o big boss era um suíno rematado, parece que dezenas, centenas de mocinhas tinham passado por isso, mas só então, numa abertura de comportas da memória, aos magotes, o crivaram de acusações parecidas. Coisas de cinco, dez, vinte anos atrás. Ninguém tinha presenciado, mas era tudo verdade. Pelo jeito, ele merecia tudo isso e mais.

Num instante, uma quantidade surpreendente de figuras conhecidas na política ou no entretenimento, celebridades em geral, foi objeto de acusações de assédio. Isso sem termos ainda definido bem o que seja assédio: grosseria, ofensa, forçação de barra, estupro? Lembrem que mão no joelho ainda não é considerado, que eu saiba, estupro. Logo, logo, será.

Um raivoso movimento de mulheres brandindo dedos, braços, documentos e acusações afirma que os homens, em princípio, não prestam. Então, nada mais de paqueras, elogios, beijinho na face na hora do encontro, gentilezas no jantar, elogio simpático no elevador. Nada de nada. Psiquiatra só pode atender as pacientes com um guarda ao lado. Não há mais falas às vezes difíceis, talvez doloridas, entre médico e paciente no consultório dele, antes ou depois dos exames. Nada de confiança. Professor ou professora a sós com criança ou adolescente, nem pensar. Portas abertas, e olhe lá. E os tios? Os primos crescidos? O dentista, imagine só?

Enfim, tudo isso mistura o trágico, o real, e o idiota: não confiamos em mais ninguém, esquecendo que assédio real não ocorre só contra meninas ou mocinhas, mas meninos e rapazes. Quem sabe adultos, belos, em cujo pescoço suspeitas virgens se atiram?


Não me crucifiquem, não interpretem mal, aliás nem me interpretem: sou contra qualquer violência, física ou verbal, e não só de homens contra mulheres. Também sou contra mal-entendidos irresponsáveis que podem ter consequências graves. Tenho medo de movimentos nem sempre lúcidos e limpos, reivindicando aos berros uma reforma vaga ou absurda, exigindo um acusado, um tribunal, ou, como disse Oprah, vendo com entusiasmo "uma luz surgindo no horizonte". Todo mundo alerta: a desconfiança se espalha feito chikungunya ou dengue.

Artigo, Bolívar Lamounier - A quinta morte da democracia

O fator preponderante nos retrocessos e rupturas é a falta de convicção das elites

Examinando as condições de atraso econômico e assustadora pobreza na virada do século 19 para o 20, Euclides da Cunha escreveu que o Brasil era um país “condenado à civilização”. Não tínhamos como ficar parados, nem como andar devagar. Precisávamos andar rápido e a direção só poderia ser a do progresso e da paciente edificação de instituições.

Adepto da filosofia positivista, à qual não faltava certo viés autoritário, Euclides não percebeu que uma parte do problema já estava encaminhada desde 1824. É mais que óbvio: insistir no absolutismo herdado do período colonial ou resvalar para o caudilhismo hispânico seria o caminho mais curto para recairmos na fragmentação e na desordem. O Estado constitucional e seu corolário, o sistema representativo de governo, amenizavam as tensões e delineavam um futuro – esse a que hoje denominamos democracia. Na última década daquele século, não fora o gênio de Rui Barbosa, é muito possível que tivéssemos sucumbido a um cenário extremamente destrutivo.

Num breve apanhado retrospectivo, podemos dizer que a morte da democracia representativa foi anunciada pelo menos cinco vezes desde o início da República, e apresso-me a esclarecer que os respectivos argumentos ocorreram em muitos países, inclusive no sul da Europa, e que não os subestimo: não é minha intenção caricaturá-los.

A primeira morte foi concebida como um caso de mortalidade infantil. Os mecanismos institucionais da democracia – eleições, partidos, parlamentos – não se conseguiriam “desprender” do poder privado dos fazendeiros, chefes e mestres da política de campanário. A proveniência desse argumento era basicamente protofascista, mas o próprio Sérgio Buarque de Holanda o situou entre as principais “raízes do Brasil”. Para os povos latinos, ele escreveu, é difícil imaginar normas gerais pairando sobre nossa cabeça. A hidra do passado colonial deglutiria as nascentes democracias tão facilmente como uma sucuri deglute um cachorrinho poodle.

O segundo atestado de óbito veio nos anos 30, agora com uma nítida declaração de origem fascista. A democracia liberal, dizia-se, era plausível enquanto se restringia a rusgas entre partidos – que, afinal, não passavam de pequenos grupos de notáveis provincianos – para decidir quem nomeava o agente local dos correios. Naquela quadra, escreveu Francisco Campos, o solitário autor da Constituição ditatorial de 1937, o liberalismo concebeu o mundo político segundo a imagem da esgrima forense. Mas o advento do capitalismo industrial elevou dramaticamente o nível dos conflitos, transformando-os em enfrentamentos mortais entre o capital e o trabalho. Nessa nova sociedade, sentenciou, só haveria lugar para “governos fortes”.

Depois da 2.ª Guerra Mundial, em todo o mundo a palavra-chave passou a ser “desenvolvimento”. O problema com a democracia seria sua incapacidade de cumprir certos “pré-requisitos”. Ela só seria possível em sociedades que previamente se houvessem adiantado economicamente, que contassem com uma população homogênea e altamente escolarizada, e assentadas sobre um robusto consenso nacional. Pior ainda, a democracia seria incompatível com o “planejamento”, a nova panaceia econômica. Hoje é fácil perceber que essa nova elucubração se esquecia de um pequeno detalhe. A democracia não foi inventada para as sociedades desfrutarem condições ideais após haverem superado cabalmente os seus conflitos, mas para que pudessem (e possam) equacioná-los com o mínimo possível de violência, dentro de um marco institucional justo e acessível a todos os grupos relevantes.

A quarta morte da democracia foi atestada no contexto do conflito Leste-Oeste, principalmente pela voz dos ideólogos marxistas. Sua sentença de morte estaria embutida na rápida ascensão e na superioridade tecnológica da economia planificada de tipo soviético. Até Isaac Deutscher, um homem culto, chegou a escrever isso. Antonio Gramsci fez um arranjo dessa peça para soprano ligeiro: o socialismo triunfará no campo da cultura, sem necessidade de recorrer a uma revolução sangrenta.

Mais complicada, até porque ainda se apresenta de uma forma nebulosa, é a quinta morte. O que se diz atualmente é que a democracia representativa é incompatível com a sociedade de hoje, na qual já não se discernem classes sociais, mas sim uma infinidade ameboide de grupos, movimentos, conselhos, etc. O caos passou a ser a norma. Nesse quadro, o representante não sabe a quem representa e a própria noção de representação perde o sentido.

Ou seja, o mundo atual é um caos permanente, indefinível, cujos contornos ninguém se atreve a tentar descrever. Que tipo de governo conseguirá mantê-lo sob controle? O chinês, no qual o Partido Comunista controla com mão de ferro um capitalismo selvagem? A democracia dita direta, reminiscente do anarquismo, em que a bondade humana substitui a “mão invisível” de Adam Smith? Uma Venezuela em escala cósmica? Ou, quem sabe, uma regressão ao pretorianismo romano, como no reinado de Cômodo, no qual mercenários leiloavam seu apoio ao imperador? Claro, com uma pequena diferença: os mercenários de hoje não portariam precárias adagas como as daquele tempo, e sim vistosos AK-47.

Não subestimo nenhuma dessas hipóteses, mas penso que o problema é bem outro. Na história das democracias, o fator preponderante nos retrocessos e rupturas sempre foi a falta de convicção das elites, sua falta do mais elementar bom senso e sua covardia quando o exercício da autoridade governamental se fez necessário. A República de Weimar e o Brasil de 1961-64 são bons exemplos. Por tudo isso, dói constatar que o Brasil ainda não se livrou em definitivo do populismo e de uma classe política virtualmente desprovida de responsabilidade pública.


*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de ‘Liberais e Antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)

Artigo, Guilherme Fiuza, O Globo - O Muro de Oprah

Artigo, Guilherme Fiuza, O Globo - O Muro de Oprah

Catherine e suas colegas disseram, com jeitinho, que suposto despertar feminista hollywoodiano é show autopromocional

Desta vez Meryl Streep não chorou. Na edição anterior do Globo de Ouro, suas lágrimas roubaram a cena para anunciar o fim do mundo com a derrota eleitoral da companheira Hillary. Os Estados Unidos tinham acabado de cair nas mãos da elite branca egoísta, e a atriz estava inconsolável diante do destino hediondo que colhera a maior democracia do planeta. Um ano depois, o emprego entre negros e hispânicos no país alcançou nível recorde. E o tema deixou de comover Meryl.

Ela e seus colegas preocupadíssimos em defender alguma vítima de alguma coisa mudaram de assunto no Globo de Ouro deste ano. Com a desoladora notícia de que os fracos e oprimidos tinham melhorado de vida no primeiro ano do governo assassino, a brigada salvacionista concentrou-se nos casos de assédio sexual. A convocação da estilista que organizou o protesto dos trajes pretos era uma fofura, tipo “não é uma boa hora para você bancar a pessoa errada e ficar fora dessa”.

Se uma intimação assim viesse do inimigo era assédio moral na certa.

Mas o show tem que continuar, e a butique ideológica foi um arraso. O stand up apocalíptico de Meryl Streep em 2017 deu lugar ao palanque apoteótico de Oprah Winfrey — aclamada, eleita e já empossada como a nova presidente dos Estados Unidos da América. Faltam apenas uns detalhes burocráticos, bobagens da vida real — que só existem para atrapalhar, como mostram os números do emprego. O ideal seria se Oprah pudesse culpar o agente laranja da Casa Branca pela marginalização dos negros, mas a realidade atrapalhou mais uma vez.

Aí ela gritou pela mulher. Coisa linda. Todo mundo chorando de novo, que nem no apocalipse da Meryl. Se Obama ganhou o Nobel da Paz antes de começar a governar, Oprah era capaz de levar o prêmio ainda no tapete vermelho. Aí vieram os estraga-prazeres lembrar a bonita sintonia da apresentadora com o dublê de produtor e predador Harvey Weinstein — sem uma única palavra dela sobre os notórios métodos do selvagem de Hollywood. Ainda veio o cantor Seal, que também é negro, dizer que Oprah é “hipócrita” e “parte do problema”. Impressionante como essa gente não sabe assistir a um happy end em paz.

O governo Oprah deveria começar construindo um muro para os invejosos não secarem mais o Globo de Ouro. Quem viesse com comentários desagradáveis sobre esse impecável espetáculo demagógico seria sumariamente deportado. Não faz o menor sentido você ter um trabalhão montando a coleção outono-inverno do luto sexual para vir um bando de forasteiros rasgar a fantasia e deixar o heroísmo de ocasião inteiramente nu.

Como se não bastasse, aparece Catherine Deneuve para jogar a pá de cal no picadeiro. Mais uma invejosa. Sobe logo esse muro, presidenta Oprah. Catherine e suas colegas disseram, com jeitinho, que o suposto despertar feminista hollywoodiano é basicamente um show autopromocional e não ataca o problema real. Estaremos sonhando? Será que finalmente alguém relevante teve a bondade de dizer isso?

Não, não é sonho. E La Deneuve disse mais: essas estrelas falsamente engajadas trazem, na verdade, uma ameaça de retorno à “moral vitoriana”, escondida nessa “febre por enviar os porcos ao matadouro”, nas palavras do manifesto publicado no “Le Monde”. Ou seja: não há nada mais moralista e reacionário que o politicamente correto. Até que enfim.

Claro que a patrulha já caiu em cima, acusando as francesas de complacência com o machismo tirânico. Retocar os fatos, como se sabe, é a especialidade da casa. Abuso de poder para chantagem sexual precisa ser denunciado sempre — não só quando se acendem as luzes do teatrinho, companheira presidenta Oprah Winfrey e grande elenco enlutado. Mas montar uma caça às bruxas fingindo que sedução é agressão — e colecionando banimentos de grandes artistas como troféu — é igualmente abominável. Tão feio quanto abandonar o tema da opressão aos negros quando o script do tapete vermelho é contrariado pela realidade.

Danuza Leão disse que o desfile dos vestidos pretos no Globo de Ouro parecia um velório. Já está sendo devidamente patrulhada, porque não se desmascara os retrógrados moderninhos impunemente (a patrulha não sabe com quem está se metendo). Aguinaldo Silva também anda sendo patrulhado por ser gay e não fazer proselitismo gay — veja a que ponto chegamos. É o ponto em que uns procuradores iluminados resolvem obrigar (repetindo: obrigar) o Santander a remontar a exposição da criança viada para fazer a selfie “heróis da diversidade”. Perguntem a Catherine Deneuve se arbitrariedade promocional faz bem à liberdade sexual.


Chega de dar plateia a esses reacionários trans. Melhor deixá-los a sós discutindo se Anitta na laje é cachorra ou empoderada.