Apresentar o julgamento de Lula como um ato político de
“luta” contra os ricos está mais para o hilário do que para o simplesmente
cômico
Coincidências, no mais das vezes, encobrem nexos
necessários entre fatos, discursos e palavras. Casualidades também revelam
projetos e tendências que, assim, se expressam. Pode igualmente ocorrer que
tenham um sentido manifestamente intencional, tornando semelhantes projetos
políticos que ganham, desta maneira, uma afinidade eletiva. Tal é o caso do ex-
ministro José Dirceu, que declarou ser o dia 24 deste mês, data do julgamento
do ex-presidente Lula em Porto Alegre, o “dia da ira”.
O parentesco político em questão é com os grupos
terroristas islâmicos, no caso o Hamas, que tem na violência e na destruição do
outro os seus meios de ação e a sua finalidade própria. No caso deles, a
destruição do Estado de Israel; no nosso, a destruição da democracia
representativa ou, em outra perspectiva, do Estado democrático de direito.
Note- se que o ex- ministro, já condenado, usa
tornozeleira eletrônica e está pendente de um julgamento para então saber se
voltará ou não à prisão. Normalmente, uma pessoa que se encontra em tal
condição deveria usar da prudência, pois está pagando por crimes cometidos,
salvo se se considera acima da lei ou, na versão petista, um “preso político”.
Ou seja, a lei valeria para todos os cidadãos, exceção feita para os petistas
e, sobretudo, para seus líderes mais importantes, como é o caso do ex-
presidente Lula.
Um caso corriqueiro de tribunais torna- se não apenas um
espetáculo político como uma afronta ao império da lei. Nesta perspectiva, o
“mensalão” e o “petrolão”, símbolos da corrupção política dos governos petistas,
tornam- se instrumentos revolucionários. Esqueceram- se de dizer que espoliaram
e exploraram a população brasileira, mormente os pobres, e não a “burguesia”,
que se tornou uma aliada no “capitalismo de compadrio”. O Brasil, no desemprego
e no retrocesso do PIB, sofre até hoje as consequências desta aventura, desta
irresponsabilidade política.
Pretender, agora, apresentar o julgamento de Lula como um
ato político de “luta” contra os ricos e as classes privilegiadas está mais
para o hilário do que para o simplesmente cômico, não fosse o fato de muitos
brasileiros ainda acreditarem neste engodo. E esse engodo veste a roupagem
revolucionária!
O chamado à manifestação, organizado pelo PT e por
movimentos sociais que orbitam em torno do partido como o MST e o MTST, tem
como objetivo deslegitimar, tornar nulo ou dificultar ao extremo o julgamento
do ex- presidente Lula. Ora, esses dois ditos movimentos sociais são, em suas
versões urbana e rural, organizações hierárquicas com explícito programa revolucionário
em moldes marxistas, voltado para a destruição da economia de mercado, da
propriedade privada e do estado de direito, em suma, para a aniquilação do
“capitalismo”. Basta a leitura de seus textos, documentos e, inclusive,
entrevistas. A aura romântica tem sua realidade na destruição sistemática que
estão empreendendo na Venezuela. O PT, aliás, não cessa de defender o
“socialismo do século XXI”, o bolivarianismo, Chávez, Maduro e asseclas. É isto
que querem para o Brasil?
O PT e os seus aliados estão perigosamente apostando na
instabilidade institucional. Deixam sistematicamente claro que a lei não vale
para eles. Ameaçam velada ou explicitamente o TRF4, cujo trabalho tem sido
impecável na condenação dos envolvidos na Lava Jato, sejam eles petistas ou
não. A cor partidária, em um julgamento, não conta. Os desembargadores,
encarregados do julgamento de Lula, têm tido um comportamento impecável. O
mesmo vale para o presidente do Tribunal, desembargador Thompson Flores, que
tem se colocado institucionalmente à altura do desafio.
O objetivo do partido e de seus aliados consiste em criar
um clima de agitação, procurando politizar o julgamento de seu líder máximo.
Alguns falam de grandes manifestações, petições internacionais e os mais
radicais vislumbram uma invasão do Tribunal. Visam, inclusive, a criar uma
imagem internacional pejorativa do país, como se vivêssemos à margem da lei, na
perseguição política da “esquerda”. A perversão é explícita. Os que
desrespeitam a lei procuram transferir essa imagem para os que defendem o
estado de direito e fazem cumprir a lei. O crime deixa de ser crime para ser um
ato revolucionário!
Observe- se que a defesa de Lula não se preocupa com
argumentos jurídicos, mas tão só com encaminhamentos que têm como finalidade
uma maior politização do processo. Advogados tornam- se militantes. Para eles,
a lei e a Constituição seriam apenas empecilhos que deveriam ser ultrapassados
e desconsiderados a todo o custo. A face bolivariana do PT torna- se ainda mais
nítida.
Está, verdadeiramente, em jogo o que se pode denominar de
uma luta política entre a democracia totalitária e a democracia representativa,
entre o projeto revolucionário e o Estado democrático de direito. A primeira
está baseada na ideia de que o “povo”, ou melhor, seus representantes e
demagogos, tudo pode, não importando o respeito ou não pela Constituição. A
segunda está ancorada na observância das leis, das instituições e da
Constituição, impondo limites a essa espécie de ilimitação da dita soberania
popular.
O exemplo recente entre nós é o da ditadura bolivariana
na Venezuela, com os seus líderes já nem mais encobrindo que não se preocupam
com as instituições democráticas. Em um primeiro momento, guardaram ainda a
aparência democrática representativa, enquanto mero instrumento de conquista do
poder. Agora, a máscara caiu.
O projeto petista, em sua fase atual, possui esse
componente de uma democracia totalitária, para a qual a vontade do povo não
conheceria limites. A eleição seria uma absolvição. Os rituais democráticos são
ainda observados, porém os discursos e manifestações sinalizam para uma
subversão mesma da democracia representativa. Pertence ao passado a mensagem de
pacificação da então dita Carta ao Povo Brasileiro, jamais reconhecida, porém,
como documento partidário.
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Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul