No dia 18 de fevereiro de 2021, uma manchete anunciava: “Após 400 recursos, caso do triplex do Guarujá transita em julgado no STJ”. Três dias depois, o jornalismo brasileiro destacava: “Lula pede anulação de decisão que certificou trânsito em julgado do caso do triplex”. Ou seja, era um novo recurso após 400 outros recursos.
Não se trata de uma exclusividade lulista. No Brasil, quem tem bala na agulha e dinheiro na carteira para bancar advogados a peso de ouro sempre usou todos os artifícios possíveis para protelar uma ação, adiar um julgamento ou até mesmo apostar todas as fichas na famosa prescrição de pena. Para aqueles mais velhos, o uso de infinitos recursos poderia servir para sensibilizar julgadores e, quem sabe assim, evitar a ida para a cadeia no fim da vida. Assistimos a esse filme inúmeras vezes na nossa república bananeira.
As críticas ao sistema, que parece ser especialista em deixar bandidos barra pesada fora da jaula, sempre vieram à tona, mas nunca foram suficientes para mudar a mentalidade do judiciário. “Mudem a lei”, “a culpa é do legislativo”, “cobrem deputados e senadores” eram frases recorrentemente usadas por integrantes da magistratura. Até que nesta semana, Alexandre de Moraes, um dos membros daquilo que um dia foi nossa Suprema Corte, resolveu encontrar um entendimento diferente. Claro, num caso que toca o próprio umbigo. Zero surpresa, mais uma vez.
Antes do início do julgamento no Supremo Tribunal Federal, o advogado do deputado Daniel Silveira ingressou com um novo recurso a pedido do cliente que ele defende – nada diferente do que fizeram os advogados de Lula e tantos outros Brasil afora. E o que aconteceu? Ele, o advogado, foi multado. Na decisão, Alexandre de Moraes justificou: “Abuso do direito de recorrer”. Opa! Surpresa! Ou a lei mudou e ninguém nos disse nada? Claro que não.
Enquanto escrevo estas linhas, transcorre em Brasília o julgamento do deputado Daniel Silveira. Sem saber o desfecho, é fácil arriscar um prognóstico: ele será condenado por ampla maioria dos membros da Corte. O crime dele? Falar. Nem mesmo a imunidade parlamentar – uma blindagem garantida pela Constituição para parlamentares terem ampla liberdade de tribuna, inclusive para dizerem sandices – foi suficiente para garantir que um deputado (pelo qual não nutro simpatia) tivesse a sua liberdade de expressão garantida.
“Ah, mas ele ameaçou ministros!”, “Daniel Silveira foi grosseiro”, “o parlamentar faltou com o decoro” são frases usadas para justificar a linha ultrapassada por Alexandre de Moraes. Em primeiro lugar, caracterizar uma ameaça como crime é algo delicado e complexo mesmo em sistemas melhores e mais evoluídos do que o nosso, como nos Estados Unidos. Em segundo, ser grosseiro demonstra falta de educação, mas não há pena prevista em lei para gente estúpida ou descortês. Se foi falta de decoro, quem deveria julgá-lo são seus pares, na Câmara, não o STF.
Venho há tempos martelando: ministros da mais alta instância da Justiça podem muito, mas não podem tudo. Colegas com mais estrada e mais experientes já alertam há tempos para o perigo que vivemos. Alexandre Garcia, J.R. Guzzo, Augusto Nunes, Guilherme Fiuza, Rodrigo Constantino são alguns deles. Mas na mídia mainstream o que não falta é gente inebriada, em estado de êxtase. Enquanto isso, no Senado, que deveria fiscalizar o Supremo, salvo exceções como Lasier Martins e meia dúzia de parlamentares, o restante parece ter dobradiça na espinha e nada faz
Na eleição de 2018 havia um temor de que a vitória de Jair Bolsonaro pudesse representar o fim da democracia, da independência dos poderes e o fim da liberdade. A ditadura parece ter chegado. Mas ela nasce do outro lado da Praça dos Três Poderes. Se um parlamentar (goste-se dele ou não) é alvo de uma ação assim, o que sobra para mim, para você, para pessoas comuns?