Enquanto dormia Gulliver foi amarrado...
Crises fazem grandes líderes, construtores de suas
nações... Mas não no Brasil
“Depois do
naufrágio, Gulliver com muito esforço consegue chegar à praia. Atira-se ao
chão e adormece profundamente.
Ao acordar não consegue se mover. Estava amarrado ao chão
dos pés à cabeça, inclusive pelos cabelos”
‘Viagens de Gulliver’, Jonathan Swift, 1726
Mais recentemente, quando penso no Brasil vejo a imagem
de Gulliver amarrado ao chão. Somos neste 2018 um Gulliver atado. Enquanto
dormíamos o tempo passou e com ele, as oportunidades. Embora gigante, não
conseguimos nos livrar das amarras com que os habitantes de Liliput -
homenzinhos de uns 15 cm de altura - nos prenderam.
Por que não conseguimos nos livrar das amarras? Porque
nós mesmos, na inconsequência de quem acha que sempre haverá tempo, nos
entregamos a uma política sem grandeza que nos levou à paralisia. Amarrados a
uma crise de natureza social, política, econômica e cultural, desativamos as
defesas com que podíamos vencer a crise.
Crises são desafios que devem convocar o melhor que temos
para enfrentá-las. São oportunidades que fazem surgir líderes com lucidez,
coragem, persistência e visão. Infelizmente, precisamos buscar esses líderes na
História e em outras nações. São indivíduos que, como Lincoln, Gandhi,
Churchill, De Gaulle, Roosevelt, estiveram à altura do momento em que lideravam
seus povos. Crises fazem grandes líderes, alguns até mesmo construtores de suas
nações... Mas não no Brasil.
Não podemos usar a crise como alavanca para o avanço por
que não podemos contar com nossas instituições políticas: os três Poderes estão
amarrados como Gulliver.
Senadores e deputados, o Executivo e seus ministérios
perderam as condições para resolver a crise. Preocupam-se com os processos em
que estão envolvidos e na reeleição. Protelam decidir matérias de gravidade
como a Previdência. Não bastasse, o STF, pelos conflitos pessoais e políticos
que abriga, se autobloqueia.
Como superar uma crise dessa gravidade se vivemos uma
batalha surda em que grande parte dos valores indispensáveis à convivência
social e a uma cultura política democrática são desprezados e contestados,
dividindo a Nação em blocos antagônicos?
Nossa política foi penetrada por práticas e princípios
que se opõem abertamente aos valores centrais de qualquer democracia. Nossa
política deixou em segundo plano a discussão sobre políticas públicas para
discutir a própria organização da sociedade. Abriram-se então as comportas para
que todos os valores que regulam a vida social entrassem em questionamento:
família, religião propriedade, crime, liberdade de imprensa, mercado,
competição, democracia representativa, livre-iniciativa, educação, liberdade de
imprensa, responsabilidade individual, mérito.
Pratica-se aberta e ostensivamente uma política em que as
ideologias penetram todas as esferas da vida como uma nova ética; em que as
relações pessoais e familiares são inferiores em importância às relações
fundadas na ideologia; em que todo aliado é virtuoso e bem-intencionado e todo
adversário é mal-intencionado e criminoso; em que se nega a existência de
princípios absolutos na moral e na religião; em que se confunde educação e
doutrinamento; e na qual o objetivo buscado legitima qualquer ato que contribua
para atingi-lo.
Não são poucos os que argumentam que toda disciplina é
odiosa; toda autoridade legal é ilegítima; que a liberdade verdadeira só existe
quando há igualdade absoluta; que a responsabilidade é um conceito perigoso
porque provoca desigualdades e individualiza situações que deveriam ser
coletivas; que toda diferença social é uma exploração; que o mérito é um
critério pernicioso por provocar a discriminação e a desigualdade; que todo
delinquente é vítima; que a verdade e todas as demais virtudes são relativas.
Já se diz entre nós que obedecer e fazer obedecer à lei e
punir criminosos faz mal à economia do País; que, dependendo de quem é acusado,
a culpa é absolvida pela intenção; em que “se eu fiz, mas tu também fizeste”
estamos iguais, nenhum pode acusar o outro e eu estou inocentado.
Já se pratica uma política em que a lei vigente poderá
ser respeitada sempre que for politicamente conveniente, caso contrário ela
deverá ser assediada e contestada continuadamente para desgastá-la e derrogá-la
na prática. Neste contexto, a qualidade da discussão política cai
dramaticamente: o grito equipara-se ao argumento, a coerência é substituída pela
desfaçatez, a ousadia afasta a prudência; a mentira se impõe como verdade; a
publicidade se encarrega da persuasão.
Esta listagem nem se tornou ainda universal em nossa
cultura política, nem esgota as linhas de conflito nessa batalha política pelos
corações e mentes dos brasileiros. Vivemos, se me é permitida a ousadia de
afirmar, uma “situação constituinte”, por via da qual normas são derrogadas e
caem em desuso pelas manifestações de rua e pela ousadia dos atrevidos, perante
as quais os Poderes se submetem pelo silêncio.
Esta listagem, embora reduzida, dá uma ideia do quanto
nós avançamos na destruição dos fundamentos de uma sociedade democrática,
próspera e civilizada. Ela nos alerta para o quanto já foi perdido e será
necessário recuperar.
O fato é que muitas de nossas escolhas foram erradas e,
quando não erradas, fracas; nossas decisões sempre evitam o custo político das
ações; nossa percepção do tempo é singular: vivemos um presente fugaz, mas sem
sacrifícios; para trás está o território das heranças malditas e para a frente,
o futuro que certamente será glorioso, ainda que nada façamos para realizá-lo.
No tempo presente nossa convicção mais profunda é de que o Estado sempre terá
recursos para bancar a despesa pública; a tarefa do governo, então, é distribuir,
não estimular a produção, e quando faltar aumenta-se a despesa e se compensa
tirando a gordura dos que têm mais.
*PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA E EX-REITOR DA UFRGS, É
CRIADOR E DIRETOR DO SITE WWW.MUNDODAPOLITICA.COM.BR