Em um apartamento sem luxos, típica casa de classe média,
diferente dos palácios onde viveu nos últimos cinco anos, a ex-presidente Dilma
Rousseff fala à jornalista Natuza Nery, da Folha, sobre diversos assuntos, mas
pouco de política; ela se queixa do ódio ao "lulopetismo" e diz que
quer escrever um romance policial; ela não faz comentários de Michel Temer, nem
esboça raiva de Eduardo Cunha, seu principal algoz, que deu início ao processo
de impeachment.
Dona Dilma" abre a porta, ao lado de Vera, sua
diarista. O apartamento em Porto Alegre tem uns 70 metros quadrados no primeiro
piso, com móveis amontoados, mais uns cerca de 50 metros quadrados no piso
superior.
A patroa sobe lentamente uma minúscula escada de madeira
já esbranquiçada pelo tempo, em caracol, segurando-se no corrimão para não
pisar em falso, e vai até o segundo andar.
Lá, duas estantes de aproximadamente três metros de
largura, repletas de livros, tomam conta da pequena sala de estar. Um sofá azul
grande disputa o ambiente onde a ex-presidente da República passa a maior parte
do tempo desde o impeachment.
"Eu queria escrever um romance policial. Gosto
muito. Li muito", diz, contemplando exemplares de sua coleção.
Um biombo corta parte do recinto e aguça a curiosidade
dos visitantes. Por trás dele, um espaço de uns dois metros quadrados esconde a
pequena área onde faz exercícios.
Há algumas faixas elásticas e um espaldar em madeira onde
faz alongamentos. Dilma se exercita diariamente sozinha. Depois, roda de
bicicleta pelas ruas do bairro Tristeza, onde mora na capital gaúcha, ao lado
de dois seguranças.
Ela mostra os punhos. Desenvolveu LER (Lesão por Esforço
Repetitivo) de tanto andar sobre duas rodas, hábito cultivado nos tempos de
Presidência. Mas não dá sinais de que pretende parar.
Dilma não parece ter ganhado peso desde que deixou
Brasília. Recebe a Folha maquiada, com o cabelo feito, de calça preta de
alfaiataria e uma jaqueta laranja. Não tem mais compromissos durante a tarde de
sexta-feira, 21 de outubro.
Marcos Nagelstein/Folhapress
PORTO ALEGRE, RS, BRASIL, 28.10.2016 - Edeifício da
ex-presidente Dilma Rousseff, na Rua Copacabana, zona sul de Porto Alegre/RS.
Foto: MARCOS NAGELSTEIN/Folhapress *** EXCLUSIVO FOLHA - NÃO USAR SEM CONSULTAR
A FOTOGRAFIA ***
Edifício da ex-presidente Dilma Rousseff, na Rua
Copacabana, zona sul de Porto Alegre
O telefone toca. A dona da casa deixa dar três toques e
atende. "Tá ótimo, tá ótimo", responde apressadamente, e devolve o
aparelho à base.
É o velho e bom telemarketing. O atendente da operadora
quer saber se a cliente aprova o serviço –pela conversa, não parece saber de
quem se trata do outro lado da linha.
Dilma desliga e murmura: "Às vezes eu finjo ser
outra pessoa. Às vezes eu sou a Janete". E sorri, como quem se diverte com
a traquinagem de enganar telefonistas.
Dona Vera sobe com duas xícaras de café. Não há móvel
para apará-las.
"Estou pensando em trazer uma mesinha da casa da
minha mãe, no Rio. Se tiver 60 centímetros de altura, os Correios transportam
por um preço bom", comenta.
Dilma se levanta e puxa uma cadeira de madeira, onde as
xícaras são acomodadas.
Em seu quarto, há apenas uma cama e uma grande TV. Há um
outro quarto abarrotado de caixas. Dilma diz que, qualquer hora dessas,
pretende enfrentá-las. Nem sabe bem o que há ali.
No banheiro, o box de vidro permite ver um par de
chinelos escorado na parede, na diagonal, como quem os coloca lá para escorrer
a água.
Trata-se de uma típica casa de classe média. Nada
parecida com os palácios em que passou a maior parte dos últimos cinco anos.
Não é estranho morar aqui depois de viver no Alvorada?,
pergunta a reportagem.
"Não. O Lula até me disse: 'para que você precisa de
um lugar grande? Fica num pequeno mesmo'".
Depois diz que se habitua a tudo. E faz planos de
cultivar uma horta na ampla –e vazia– área externa do segundo andar. Ali, não
há muita privacidade. Há um prédio logo ao lado e outro ainda em construção.
No edifício, não há porteiro nem garagem subterrânea. Os
dois seguranças da Polícia Federal a que tem direito como ex-presidente ficam
no pilotis, sentados num banquinho de praça. Não há guarita.
Dias depois da visita da Folha, um amigo da petista
contou que a síndica do prédio colocou os seguranças para o lado de fora, na
garagem de um estabelecimento que fica de frente para o conjunto habitacional.
Mas os moradores pediram para que voltassem, sentiam-se mais seguros com eles
lá dentro.
Como está depois de tudo?
"Estou bem. Não aguento a infelicidade",
retruca.
Vai ficar em Porto Alegre mesmo? Não fica muito sozinha
por aqui?
"Vou ficar, sim", afirma, e conta que, nos fins
de semana, visita o ex-marido Carlos Araújo, os dois netos e, vez ou outra, um par
de amigos.
Das visitas que recebe, a melhor de todas é a de Gabriel,
o neto mais velho, que passa umas duas horas por fim de semana na casa da avó.
Ele desenha e vê desenhos na TV.
Dilma não parece ter engrenado na vida social. Não vai ao
teatro e ao cinema, programas que sempre se ressentiu de não fazer nos tempos
de mandatária. Também não sai para jantar ou almoçar fora.
"Eu tenho 68 anos. E não tem tido nada que eu esteja
querendo ver por aqui."
O livro sobre seu anos de Presidência deve ficar para
depois. Sabe-se lá quanto depois. Ela não fala muito de projetos futuros. Fala
menos ainda de política, como se tomasse relativa distância para colocar as
coisas no lugar.
Também não toca muito no assunto impeachment. Mas afirma
estar preocupada com uma onda conservadora no país.
Quase não faz comentários sobre Michel Temer. Nem esboça
raiva de seu principal algoz, Eduardo Cunha, naquela sexta-feira à tarde já há
três dias preso.
Queixa-se do ódio ao "lulopetismo". E trata o
antecessor com deferência e carinho.
Dona Vera serve o segundo café, mas só para a reportagem.
"Já estou ficando com enjoo", diz Dilma.
Por volta das 18h, quando dona Vera começa a rondar meio
sem motivo a sala do andar de cima, a patroa intervém. "A senhora está
querendo ir, né, dona Vera?".
A funcionária responde com uma pergunta. "A senhora
ainda vai precisar de mim?"
A Folha indaga se a ex-presidente teme pegar avião, ser
hostilizada. "Disso? O que eu posso fazer, não ir? Não fico
traumatizada."
Alguma vez, nesta crise, chegou a chorar? "Não.
[Mas] sou capaz de chorar assistindo a um filme". Ou quando se lembra dos
amigos que perdeu para a tortura.
"Eu tenho muita dó dos que morreram, imensa. Porque
é gente como eu, mas que morreu aos 30 anos. Me dá uma gastura enorme. Não
gosto de pensar", lamenta.
Quase no fim da conversa, Dilma Rousseff pergunta:
"Será que eles podem ler livros lá na prisão?".
A ex-presidente não diz o nome Lava Jato, mas claramente
se refere aos detidos pela operação.