Em entrevista ao programa Roda Viva, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, manifestou incômodo com a “implicância” – palavra dele – de quem questiona a convivência de ministros e magistrados com políticos e empresários em eventos corporativos ou festivos. “Há incompreensão, percepção equivocada de que ministros do Supremo sejam disponíveis a qualquer influência”, disse. “É um equívoco achar que as pessoas chegam a essa altura da vida disponíveis a qualquer tipo de sedução, como uma passagem para ir à Europa ou um hotel de qualidade. A maior parte das pessoas que está lá tem toda a condição de ir sem ser convidada.” Ou seja, como os juízes podem bancar seus luxos, não há problema quando terceiros os bancam. Ao comentar casos julgados por ministros que têm parentes nas bancas advocatícias que defendem uma das partes, contemporizou: “Tudo o que um ministro do Supremo faz está sujeito a um escrutínio público, (...) se houver alguma coisa errada, (a imprensa) vai contar a todo mundo”.
Tudo se passa como se não houvesse conflitos de interesse objetivos e comportamentos inadequados a priori. A isenção dos juízes só pode ser questionada a posteriori, depois de decisões parciais. A sociedade que se satisfaça com a convicção do magistrado sobre seu próprio caráter – “Depois que eu penso qual é a solução correta, não tem pedido, não tem favor, não tem pressão econômica, eu faço o que tenho que fazer”.
Não é esse o entendimento do Código de Ética da Magistratura, que exige que o juiz evite “todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”. Não se trata só de não favorecer, mas de evitar a impressão de favorecimento. Não basta ser imparcial, é preciso parecer.
Mas essas aparências estão se perdendo num melê ético. A liturgia do cargo é cada vez mais irrelevante. Ministros promovem “fóruns” na Europa bancados com patrocínios de empresas com processos no STF, onde prestigiam corruptos confessos e condenados. E daí? Se houver favor judicial, a imprensa que o denuncie. Se não, “não há como você regular a vida privada de uma autoridade pública”, reclamou Barroso. De novo, não é o que entende a Lei da Magistratura, que exige que os juízes não só ajam com “independência”, mas tenham “conduta irrepreensível na vida pública e particular”.
Com exegeses tão elásticas das regras da magistratura e do princípio constitucional da impessoalidade, não surpreende que ministros articulem a indicação de candidatos de sua predileção às cortes ou ao Ministério Público, nem que o presidente da República tenha se sentido tão confortável para indicar à Corte seu amigo e advogado, Cristiano Zanin.
Em 2023, uma proposta de resolução no Conselho Nacional de Justiça que daria mais transparência e controle à participação de juízes em eventos patrocinados foi derrubada no plenário. O povo, por meio de seus representantes eleitos no Congresso, estabeleceu em 2014 uma regra prevendo o impedimento do juiz nos processos em que a parte for cliente do escritório de advocacia de algum parente seu. Mas em 2023, numa ação da Associação dos Magistrados, o STF decidiu que este era um preconceito intolerável pela Constituição. Cinco dos sete ministros que votaram pela inconstitucionalidade têm parentes na advocacia.
Se alguém, por exemplo, questiona a idoneidade do ministro Dias Toffoli por suspender multas de uma empresa como a J&F, que tem entre seus defensores ex-juízes (como foi, por um tempo, o ex-ministro Ricardo Lewandowski) e parentes dos juízes, como a esposa do próprio Toffoli ou a de Zanin, há de ser por mera “implicância”. A promiscuidade, pelo jeito, está nos olhos de quem vê. Basta que a sociedade acredite que juízes como Toffoli pensam na solução correta e fazem o que tem de fazer.
Barroso, de sua parte, diz não ver necessidade de um código de ética para regular condutas dos ministros, donde se supõe que não veja condutas antiéticas a serem reguladas. Se é isso o que o chefe do Judiciário entende por Justiça “cega”, então a sociedade tem um problema.