Valor: Qual o efeito do ataque dos EUA?
Décio Oddone: Durante décadas, as crises do petróleo
criaram na economia, que geraram efeitos nefastos mundo afora. No Brasil, o
reflexo mais importante disso foi a década perdida nos anos 1980 em função das
duas crises do petróleo, em 1973 e 1979. Como isso é muito recente e está muito
arraigado no pensamento das pessoas, não se percebe as mudanças estruturais que
houve no mercado de petróleo nos últimos tempos. A partir da revolução do
“shale” [petróleo não convencional] nos EUA, que ganhou força no fim da década
passada, o quadro mudou completamente. Os EUA, que eram um grande importador de
petróleo, tiveram um aumento brutal de produção, passaram a ser exportadores, e
isso diminuiu a dependência americana do Oriente Médio. Ao mesmo tempo, houve
aumento de produção de petróleo convencional em outros países, como o Brasil.
Antes havia um suprimento de petróleo muito concentrado
no Oriente Médio. Mas abriram-se frentes de oferta em países com estabilidade
política. Essa mudança toda geopolítica do petróleo fez com que hoje as crises
não sejam tão agudas. O “shale” significa o fim do petróleo caro no longo
prazo. A outra novidade no cenário global é a demanda. A transição energética
não é uma opção, é um fato. A sociedade já decidiu consumir energia mais limpa.
Esse crescimento das fontes renováveis vai impactar a demanda de
hidrocarbonetos. A transição energética e o crescimento das renováveis
trouxeram para o nosso horizonte o início da redução da demanda por petróleo.
Valor: Do ponto de vista geopolítico, qual a relação
entre a morte de Qassem Soleimani e o ataque ás refinarias da Saudi Aramco?
Oddone: Essas crises de relações entre países geram
instabilidade em um primeiro momento. Nesse caso [morte de Soleimani], ela gera
também risco de aumento de ações terroristas e um risco de conflito mais longo
e aberto. Mas esse não parece ser o cenário mais provável. O que o evento na
Arábia Saudita em setembro mostrou foi um aumento do risco para o mercado de
petróleo. Especialmente um aumento do risco concentrado nessas instalações que
estão mais próximas das zonas de conflagração. Foi uma surpresa para a
indústria um ataque com drones em instalações tão bem protegidas. Estávamos
acostumados a pensar que, geopoliticamente, para se fazer um ataque daquelas
proporções, para paralisar metade da capacidade de produção da Arábia Saudita
em questão de horas, seria preciso uma força militar estruturada. Essa sensação
de risco se confirmou agora com esse episódio no Iraque. É a continuação desse
processo de aumento de risco, que traz em um primeiro momento aumento de
volatilidade. Nesse caso novo, é mais provável que haja aumento de ações
terroristas do que um conflito aberto e longo. Nesse cenário, o que vamos ver é
volatilidade {[de preços], mas dificilmente vamos ter um choque de grande
magnitude no preço}.
Valor: E quais os efeitos da crise entre EUA e Irã para o
Brasil?
Oddone: Muita coisa mudou no Brasil desde os choques do
petróleo. O Brasil era absolutamente dependente de petróleo importado.
Importávamos 1 milhão de barris diários. Agora exportamos mais de 1 milhão de
barris diários. Nos próximos dez anos, seremos um dos cinco maiores produtores
e exportadores de petróleo. O impacto na balança de pagamento será muito grande
e na receita pública também.
Estamos falando de possivelmente mais de R$ 300 bilhões
por ano de arrecadação.
Em 2018, eram R$ 50 bilhões. Nossa matriz energética
também se diversificou.
Nossa gasolina tem 27% de etanol. No diesel, são 11% de
biodiesel. Como somos um país que exporta muito hoje e vai exportar muito mais
ainda, o aumento do preço do petróleo aumenta a receita pública no Brasil. É
bom do ponto de vista fiscal. Ele gera impactos negativos na economia, porque
eleva o preço, tem inflação e aumento de custos. A novidade é que, pela
primeira vez na história, o Brasil teria recursos, se quisesse, para mitigar
esses efeitos. O aumento de arrecadação que vamos ter para cada aumento de
dólar no preço do petróleo no mercado internacional é maior do que o custo que
isso teria em reais para mitigar o impacto no diesel, gasolina e GLP {gás
liquefeito de petróleo]. A pergunta que fica é: vale a pena, em um ambiente de
transição energética, usar recursos adicionais para subsidiar combustível e dar
sinal de preço equivocado a economia? Há países que fazem isso. Eu pergunto se
existe algum desses que teve sucesso econômico.
Valor: Mas o consumidor não terá certeza de que o recurso
será bem utilizado para outros fins.
Oddone: Sem dúvida. Mas aí é outra questão, aquela
discussão interminável sobre a “maldição do petróleo”. Não existe maldição do
petróleo. Existe má gestão. A novidade é que vamos ter dinheiro do petróleo. Se
escolhermos fazer com esse dinheiro show de samba, festa de final de ano,
pintar de dourado o calçadão, a culpa será do petróleo? A culpa será da má
gestão. Compete a sociedade fiscalizar e se preparar para utilizar bem os
recursos. É bem melhor ter dinheiro e escolher o que fazer do que não ter
dinheiro.
Valor: O presidente Bolsonaro sinalizou que uma saída
seria a redução do ICMS.
Isso é possível?
Oddone: É uma decisão política dos governadores. Se você
quer discutir preço de combustíveis de maneira efetiva, não adianta discutir só
a commodity. O problema é que temos a visibilidade dos preços das commodities,
que a Petrobras se acostumou a divulgar. Mas isso é um terço [gasolina] ou
metade [diesel] do preço. Precisamos também ter atenção com os outros dois
componentes: os impostos e as margens de distribuição e venda.
Valor: O que pode ser feito com relação a tributos?
Oddone: O ICMS é muito ineficiente na forma que ele é
aplicado. Os Estados estabelecem a alíquota de cobrança do ICMS. Para a
gasolina, está na faixa de 25% a 34% do preço na bomba. No diesel, é de 12% a
25%. E no etanol, de 12% a 32%. O ICMS acelera movimento de preços na bomba. A
cada 15 dias, os Estados fazem uma pesquisa de preços na bomba. Se o preço
sobe, o governo reajusta o ICMS, para refletir o aumento. Quando o preço da
refinaria ou de importação aumenta, e o dono do posto recebe aquele repasse e
aumenta o preço na bomba, o governo estadual vai lá, faz uma pesquisa, vê que o
preço na bomba subiu e aumenta o ICMS. Quando ele aumenta o ICMS, o dono do
posto aumenta o preço de novo.
Daqui a 15 dias, o governo vê que o preço na bomba subiu
de novo. E aí ele sobe o ICMS. Fica um ciclo de alavancagem de aumento de
preço. Da mesma maneira, para baixo. Há um efeito nocivo de volatilidade na
arrecadação estadual. Idealmente, o ICMS deveria ser, na minha opinião, um
valor fixo, que o Estado poderia reajustar em determinado período. A principal
medida que poderia ser feita para melhorar o ambiente do setor de combustíveis
do Brasil seria uma reforma do ICMS, equalizando e estabilizando os valores.
Valor: Isso seria viável?
Oddone: Isso é uma decisão dos Estados. Algo mais amplo
teria que ser um acordo no âmbito do Confaz [Conselho Nacional de Política
Fazendária] ou a reforma tributária, que poderia endereçar esse tema.
Valor: A Petrobras disse que segue monitorando os preços
internacionais, após o ataque dos EUA.
Oddone: A Petrobras é uma empresa que tem liberdade de
atuação. E a liberdade de preços está dada pela lei. Na maior parte do mundo é
assim, os repasses não são instantâneos.
Valor: Seria ruim controlar preços enquanto a Petrobras
coloca á venda refinarias?
Oddone: Ninguém está falando de controle de preços no
Brasil. Isso é página virada.
Valor: O senhor acha que a sociedade já entende dessa
forma?
Oddone: Sim. Esse entendimento majoritário está presente.
Também está começando a ficar presente o entendimento que são necessárias
melhorias na forma que nós tributamos os combustíveis, especialmente o ICMS.
Hoje ainda não temos um entendimento amplo de que é necessária também uma
mudança no ICMS.
Valor: O governo, no último ano, se preocupou com uma
possível reação dos caminhoneiros.
Oddone: Essa preocupação com os caminhoneiros é uma
relação do governo na qual a ANP não tem envolvimento. Atuamos como órgão de
consulta, de apoio nas questões relacionadas com combustíveis.
Valor: O que o senhor pensa sobre a recondução no cargo?
Oddone: Meu mandato não será renovado. Primeiro, sempre
disse que não renovaria. E, segundo, porque não pode. A nova lei não permite
isso e acho isso correto. Quando aceitei o desafio de vir trabalhar na ANP, no
fim de 2016, vim com uma missão, que eu mesmo me impus, de contribuir para o
processo de mudança profunda que vivemos no setor de óleo e gás nesses anos. A
missão está cumprida.
Valor: O que acha da divulgação dos preços dos
combustíveis hoje?
Oddone: Está bem melhor do que antes.
Valor: Está no ideal?
Oddone: O ideal é ter mais divulgação em mais pontos,
mais competição. Mas isso é uma construção. Vamos chegar lá.