José de Souza Martins: Pensamento pobre
- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana
Em comparação com minha época de estudante, as pessoas de
hoje são muito mais informadas do que eram as daquele tempo. Mas não são menos
ignorantes. Sabem muito, mas imprópria e provisoriamente. Sabedoria que chega
ao interessado com uma clicada no celular ou no computador para ser esquecida
em 20 minutos. Ficam resíduos que vão constituir a nova cultura popular dos
cheios de certeza sobre todos os assuntos. Mas, uma coisa é ficar sabendo,
outra, muito diferente, é saber. Por isso, somos hoje mais enganados do que
éramos há meio século.
No geral, sabem acertar no acaso dos testes de múltipla
escolha, mas não sabem explicar a construção da pergunta nem a razão da
resposta. Quem, como eu, é professor universitário, sabe que há diferenças de
competência entre os alunos que ingressaram nas grandes universidades em 1960 e
os que estão nelas ingressando em 2017. No peneiramento dos talentos, que
ocorre ao longo do curso universitário, apenas uma parte dos ingressantes tem
as características próprias do que Karl Mannheim define como intelectual.
Felizmente, ainda são muitos que as têm porque é muito maior do que no passado
o número dos que chegam à universidade, embora sobrem proporcionalmente em
menor número.
O maior e mais fácil acesso a fontes de informação
difundiu uma cultura padronizada, privada de componentes críticos e de
raciocínio próprio de gente que até sabe responder as perguntas, mas que não
sabe desconstruí-las, decifrar-lhes as conexões de sentido, entender-lhes a
lógica interna. Perguntas são apenas causas de respostas, já não propriamente
desafios de interpretação. As hierarquias, no âmbito do conhecimento, foram
substituídas pelas equivalências e seus signos. Tudo parece equivalente, o que
enche esses novos sábios do cotidiano de certezas definitivas e absolutas. Os
saberes são medidos pelo mesmo metro, por mais diferentes que sejam entre si.
Na era do almoço por quilo não há a menor diferença entre
filé-mignon e repolho. Não há, também, a menor diferença entre o saber de um
engenheiro que teve formação científica e um engenheiro que teve apenas
formação técnica. Não há diferença entre um médico que ausculta, apalpa e
diagnostica e um médico capaz de fazer um diagnóstico cientificamente explicativo,
com base em pesquisa científica. Não há diferença entre o economista capaz de
fazer cortes e ajustes na economia que afeta a todos e o economista capaz de
propor políticas econômicas baseadas em diagnósticos fundamentados, mas também
em avaliações científicas das consequências sociais das medidas que propõe. Não
há diferença entre o economista que faz estudos e análises com base na premissa
do primado da produtividade e o que é capaz de pensar a economia com base na
função da produtividade no bem-estar social.
Embora haja muitas exceções, no geral as pessoas aprendem
a repetir, mas não aprendem a pensar. Tenho notado, nas reações ao que escrevo
e ao que colegas e conhecidos escrevem ou ao que dizemos em palestras e
conferências, especialmente para pessoas de educação média, em diferentes
lugares do Brasil, questionamentos chapados, de matriz ideológica, em alguns
casos informados por orientações padronizadas de igrejas, em outros por
orientações padronizadas de partidos, grupos de interesse partidário ou grupos
ideológicos.
Questionamentos baseados em simplificações
padronizadoras. Todo negro descende de escravos, o que não é verdade. Todo
pardo é negro, ainda que negro de mestiçagem, o que é menos verdade ainda. Todo
operário é pobre, o que não corresponde ao fato de que um número extenso de
operários tem salários maiores do que muita gente da classe média.
A consciência social crítica dissolveu-se na
pseudocrítica da recusa, da intolerância, do ódio. Uma cultura da vingança se
disseminou. O pressuposto da resistência está em toda parte. Tudo se tornou,
supostamente, resistência. A resistência como sinônimo de ser contra e não como
sinônimo de ser crítico, isto é, de ser capaz de desvendar os aspectos ocultos
e invisíveis de todos os campos sobre os quais pode incidir a pesquisa
científica.
Nas ciências humanas isso é particularmente complicado. A
pessoa comum não tem como compreender na superfície do visível causas e fatores
profundos e ocultos dos acontecimentos sociais. Luta contra porque acha que sabe.
Opõe-se ao conhecimento científico porque este esvazia criticamente o
conhecimento ideológico.
O pensamento já não é a consciência social da práxis, do
pensar para transformar, para emancipar, para estar junto com os outros. O
pensamento pobre sobre ricos e pobres em vez do pensamento rico sobre pobres e
ricos, sobre as contradições que nos dividem e nos afundam.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do
Outro nos Confins do Humano” (Contexto).