Artigo, Tito Guarniere - Presídios em fúrias

A cobertura da imprensa sobre as chacinas nas cadeias brasileiras é superficial e enganosa. Jornalistas e analistas capricham nos adjetivos, para realçar a indignação e a revolta, mas se perdem nas rotulagens fáceis, passam ao largo das razões profundas e pouco contribuem para o debate e mesmo para a informação honesta.

A julgar pela abordagem comum da mídia, as penitenciárias de Manaus e Roraima são da alçada da União. O apego doentio à crença de que a solução dos problemas deve ser buscada, sempre, no governo central em Brasília, escamoteia a realidade: a administração daqueles presídios é dos estados, não da União.

Desse modo, uma expressão infeliz do presidente Michel Temer, incidental e secundária, ganha status de assunto relevante, senão principal, passando a impressão de que Temer, ao dizer que a chacina de Manaus foi “um terrível acidente”, é um desalmado, capaz de catalogar a tragédia apenas como um acidente. É patético.

Descobrem, agora, horrores da empresa que administra o presídio de Manaus. Deixa-se de lado, de novo, o principal: o presídio estava com mais do que o dobro da capacidade de lotação. E é o Estado que manda para lá os presos além da lotação. Nas cadeias entupidas, seja a gestão pública ou privada, a qualquer pretexto se rompe o frágil equilíbrio, degenerando em rebelião e mortes.
Sabe-se também que de um terço até 50% dos detentos, dependendo das fontes, são de prisões provisórias. Se temos 650 mil presos nas cadeias do país, então entre 220 mil e 325 mil aguardam sentença. Quantos desses podem ser absolvidos, aguardar em liberdade a sentença ou acertar as suas contas com a Justiça através de uma pena alternativa? É o efeito mais devastador da morosidade da Justiça brasileira.
A cada motim, retomam a ideia de um mutirão da Justiça para esvaziar as cadeias. Mas logo, logo, a promessa é esquecida, sucumbe à rotina, até a próxima tragédia. Na crise atual do sistema, nenhuma outra providência daria resultados tão imediatos. Pode ser para fevereiro ou março, quando suas excelências – juízes, Ministério Público, defensorias - voltarem das férias.
Por falar nisso, onde está o Ministério Público? Nestas horas desaparece do radar, abre mão do comum protagonismo. A mídia, os apresentadores da tevê, só querem saber do MP na Operação Lava Jato. Na crise penitenciária, os senhores procuradores e promotores não têm nenhum papel a cumprir? Na cobertura das chacinas, a grande imprensa ama o fácil, o cômodo, o clichê. Manda toda a conta para Brasília, o governo central, o presidente, o ministro da Justiça, e livra a cara do Judiciário, do Ministério Público, das defensorias públicas.
Um debate para valer: atribuir às forças armadas um conjunto de tarefas e missões na guerra contra o tráfico e os sindicatos do crime. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica custam dinheiro demais ao país no “treinamento” para uma guerra sabe-se lá contra quem, que não está no horizonte, ignorando a guerra que corre solta, decepando cabeças, no limiar do descontrole, e cujas batalhas sangrentas se travam no interior encardido das prisões brasileiras.

titoguarniere@terra.com.br

O Estado capturado

O Estado capturado
Professor de Filosofia

Por: Denis Rosenfield, em Zero Hora

As chacinas e massacres das prisões brasileiras denotam, antes de mais nada, uma ausência de Estado. O sistema carcerário faz parte do sistema estatal, independentemente de sua administração ser terceirizada para o privado.

Sua função consiste em assegurar a vida e a segurança dos que, por seus crimes, são afastados do convívio social. Devem ser mantidos à parte da sociedade, sem que isto signifique, porém, que sua vida possa estar em risco. O direito à vida é um princípio do Estado, valendo igualmente para os detentos.

Contudo, a situação carcerária está indo simplesmente além de uma omissão do Estado por revelar uma captura de todo um setor estatal pelo crime organizado.

Não se trata de uma mera escaramuça entre detentos, mas de uma luta de facções dentro dos presídios pelo seu controle; ou seja, estamos diante de uma luta pelo poder, reflexo de uma luta pelo narcotráfico em todo o território nacional.

Observe-se que não se trata de uma luta entre o crime organizado e os agentes penitenciários ou policiais, mas de uma luta interna entre as organizações criminosas. É como se os policiais e agentes penitenciários não mais existissem.

O Estado foi capturado. É como se o Exército em uma batalha militar tivesse evacuado um território por tê-lo perdido, passando este a ser controlada por seus inimigos.

Ora, trata-se de uma situação extremamente grave, com o Estado não podendo mais assegurar a qualquer cidadão o direito à vida, à segurança.

Se, de um lado, o Estado perdeu o controle dos presídios, de outro, perdeu o controle das ruas. Homens e mulheres não mais conseguem caminhar livremente nas cidades brasileiras. Não podem circular em carros ou ônibus, pois são acossados diariamente pelo crime.

O Estado tampouco consegue proteger adequadamente as suas fronteiras, com as organizações criminosas introduzindo livremente no país drogas e armamentos. Lá também se trava uma guerra que não tem merecido a atenção devida.

Estamos diante de uma situação muito perigosa, com o Estado deixando progressivamente de agir, abdicando de seus "territórios".

O Estado do Rio de Janeiro, em particular, é um símbolo do que pode, amanhã, ocorrer em qualquer cidade brasileira. Foi capturado pelo crime. Até um ex-governador está preso, dada a enormidade da corrupção praticada.


A falência do sistema carcerário pode ser mais uma manifestação de uma séria desestruturação do Estado brasileiro. 

Reportagem da Folha de S. Paulo - Maioria dos brasileiros não tem reserva para emergência

Maioria dos brasileiros não tem reserva para emergência

Os brasileiros são os mais vulneráveis do continente em caso de emergência: 44% deles –mais de 70 milhões acima dos 15 anos– consideram impossível levantar cerca de R$ 2.500 numa necessidade extrema, segundo o Banco Mundial (para permitir comparações, o órgão usou uma quantia relativa, equivalente a 1/20 do PIB per capita).
No mundo, só sete países estão mais despreparados.
Dos brasileiros que acham possível obter a quantia, apenas 16% dizem poder recorrer às próprias economias; mais da metade pediria ajuda a amigos ou parentes.
APENDICITE NAS FÉRIAS
"São duas coisas em que ninguém pensa: seguro de vida para o pai ou mãe de família e a reserva de emergência", afirma o planejador financeiro Flavio Kokis. "Mas o telhado pode cair, o filho pode ter uma apendicite nas férias, o carro pode quebrar e ficar caro."
Segundo ele, quando guarda algum dinheiro, a maior parte de seus clientes (das classes A/B) está pensando em viajar para a Europa ou em comprar um carro novo.
O planejador diz que o ideal é ter um fundo de emergência que varia de 3 a 12 vezes o custo mensal da família -dependendo da profissão, da estabilidade de renda, do estado civil, entre outros itens.
Segundo levantamento da Serasa feito em 2015 (2.002 maiores de 16 anos, margem de erro de 2 pontos percentuais), 73% dos brasileiros não conseguiriam cobrir seus custos por mais de 90 dias.
A situação fica mais grave na velhice, porque "o tempo é uma serpente altamente venenosa", como disse um empresário de 62 anos que preferiu não ser identificado.
"Quando alguém chegou à minha idade e não poupou nada, passa a ser um problema social", afirma ele.
TRÊS VEZES NULA
O estudo do Banco Mundial leva em conta só a poupança financeira, que é um dos itens de patrimônio capazes de assegurar recursos na velhice ou numa emergência.
A posse de imóveis, de veículos, de bens duráveis que possam ser vendidos e mesmo o investimento em educação são também considerados formas de poupança.
Apesar da dificuldade em levantar dados objetivos sobre o patrimônio dos brasileiros, estudo feito a partir da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) do IBGE indica que 81% das famílias têm poupança financeira nula.
Se a casa própria for considerada, são 61% os de poupança zero, e 47% não têm nem dinheiro, nem casa, nem carro como patrimônio.
O trabalho dos economistas Marcos Antonio Coutinho da Silveira e Ajax Reynaldo Bello Moreira tem como base as duas POFs mais recentes (2002/2003 e 2008/2009).
Para os pesquisadores do Ipea, um dos fatores que impedem a acumulação de poupança é o baixo acesso ao crédito. Sem empréstimos para suavizar o consumo, as pessoas consomem toda a renda.
Mas, mesmo entre os 10% mais ricos da população, 46% das famílias tinham poupança financeira zero.
SALDO DE R$ 1,66
Construir indicadores que levantem o lado patrimonial das famílias para avaliar seu equilíbrio financeiro é considerado importante pelo Banco Central, conforme seu relatório de inclusão financeira de 2014.
O número de pessoas físicas com caderneta de poupança não é um bom indicador, porque as contas não são usadas para fazer reservas.
Dos 131,8 milhões de brasileiros com caderneta, 60% tinham menos de R$ 100. O saldo médio era R$ 1,66.
Segundo o diretor de Relacionamento Institucional e Cidadania do BC, Isaac Sidney Menezes Ferreira, estudo feito em 2014 mostrou que 45% das famílias não tinham sobra financeira regular.
"Um número significativo mencionou ainda custo-benefício (rendimento não vale a pena, taxas altas, impostos), não inclusão bancária ou falta de confiança no sistema financeiro" como razão para não investir.
POUPANÇA E PIB
O nível de poupança não afeta apenas as perspectivas da vida de indivíduos e famílias, e seu padrão de consumo agora ou no futuro, mas também as perspectivas de crescimento econômico.
O aumento do PIB depende também do investimento, que precisa ser financiado por poupança: o que as famílias e o governo deixam de consumir (poupança doméstica) ou recursos externos (endividamento no exterior).