Francisco Ferraz, Estadão - A batalha publicitária de Porto Alegre
Num exercício de ‘faz de conta que’, o PT e as esquerdas
optaram pela negação da realidade *Francisco Ferraz O que pretendem Lula e a
esquerda com a despropositada e aberta contestação à legitimidade da Justiça
para julgá-lo no recurso que encaminhou ao Tribunal Regional Federal da 4.ª
Região (TRF-4)? A pergunta faz sentido porque:
● quem provocou esta fase processual foi o próprio Lula,
usando um direito seu de recorrer da decisão de primeira instância; ● antes
desta fase, Lula participou das anteriores, sem contestar o direito/dever que o
juiz singular tem de sentenciá-lo; ● o ex-presidente certamente não se esqueceu
de que, ao tomar posse, jurou solenemente cumprir e fazer cumprir a
Constituição que agora está afrontando; ● Lula e seus advogados sabem que estão
contestando um princípio geral do Direito que é um dos fundamentos da ordem
jurídica: “ninguém pode ser juiz em causa própria” (nemo iudex in causa sua).
Derrubado este princípio, a sociedade retrocede para o estado de natureza
hobbesiano, isto é, quem detiver o poder político também terá o poder de
julgar, inclusive de julgar em causa própria; ● além disso, ao desafiar e
ameaçar os juízes de maneira tão agressiva, está criando um sentimento de
autodefesa institucional inevitável, que em nada contribui para seu objetivo de
revogar a decisão que o condenou; ● ao escolher o Poder Judiciário como
inimigo, aposta numa estratégia anti-institucional, antidemocrática e
possivelmente autodestrutiva que até agora não funcionou. Ataca e constrange
quem vai julgá-lo, sem saber o resultado do julgamento. Diante deste tipo de
ataque, amplificado pela inusitada mobilização política para o dia do
julgamento, como seria visto o Judiciário, se viesse a acolher seu recurso?
Para muitos, pareceria que se acovardou. Embora essa situação hipotética não
deva afetar a decisão de um tribunal que preza sua independência, como é o caso
do TRF-4, por certo abala os argumentos de recurso, transladando seu autor da
condição de vítima para a de agressor; ● este aspecto da estratégia adotada só faz
sentido se ele está convencido de que: 1) vai ser novamente condenado neste
julgamento; ou 2) sabe que este talvez seja seu “canto do cisne” e que não terá
outra oportunidade tão favorável para produzir um ato político de grande
envergadura em seu apoio. Esses dois aspectos implícitos em sua decisão são
decorrências lógicas da opção por este curso de ação; ● Lula, ao agir assim,
deve também saber que o País e as instituições não vão cair de joelhos e
pedir-lhe desculpas, atitude de que, segundo ele, é merecedor. Como tal, seu
comportamento revela, ainda, seu pessimismo quanto ao desfecho do julgamento.
Entretanto, como hábil político que inegavelmente é, sua
opção pela contestação da independência do Poder Judiciário e até mesmo da
legitimidade da democracia indica a opção por uma estratégia vitimista. Em caso
de condenação, o ressentimento deverá ser a base emocional para a mobilização
política no pós-julgamento. É a opção política própria do derrotado: voltar-se
contra o regime político sob o abrigo do qual “seus inimigos” o derrotaram.
A ser correta essa análise, fica evidente que Lula, o PT
e as esquerdas continuam falando “para dentro”. Discursam para quem lhes
garante o aplauso certo; escrevem e criam fatos para convencer os que já estão
convencidos.
Estrategicamente, a manifestação em Porto Alegre não é
uma batalha jurídica, e sim uma batalha publicitária que busca – pelo tamanho
do público, oratória, slogans, comportamentos e cobertura midiática – manter
eleitores fiéis e atrair indefinidos. Batalha publicitária paga, entretanto,
com danos causados à já severamente comprometida institucionalidade democrática
brasileira.
Sempre será possível reunir militantes e simpatizantes
provindos de todo o País num único lugar. Não é difícil, havendo recursos e
relações pessoais, atrair políticos, intelectuais e simpatizantes de outros
países, e é fácil trazer artistas e intelectuais, professores e alunos.
O profissionalismo e a competência dos responsáveis pela
Lava Jato tisnaram o PT com a marca da corrupção. As derrotas políticas e
eleitorais no País e de regimes de esquerda na América Latina, sobretudo a
situação trágico-patética da Venezuela, não levaram o PT e as esquerdas a
repensar criticamente sua situação.
Num exercício de “faz de conta que”, optaram pela negação
da realidade. Essa negação, porém, colidiu com a consciência da realidade pela
população e acabou se tornando o discurso único da esquerda. A insistência em
falar “para dentro” resulta da insegurança e da incerteza no resultado político
de falar para “os de fora”, além da perturbadora desconfiança sobre a
consistência e permanência dos resultados das pesquisas.
Foi a pesquisa que trouxe oxigênio para a sobrevivência
política, e com ela a esperança, já que sem ela o quadro político seria muito
diferente. A posição de liderança de Lula nas pesquisas eleitorais trouxe a
esperança de uma recuperação e até, quem sabe, a esperança de um perdão.
Há dois fatores, entretanto, que, não obstante a
qualidade das pesquisas, podem provocar mudanças nos seus principais
resultados: o fator tempo e o fator grau de conhecimento dos candidatos pelo
eleitor.
Estamos ainda distantes da campanha presidencial. Nem os
atuais pré-candidatos nem a posição relativa de Lula devem ser encarados como
definitivos. Grande parte dos eleitores se decide durante a campanha. Além
disso, acredito que há pelo menos dois possíveis candidatos que ainda não estão
na disputa.
O segundo fator diz respeito à variável conhecimento.
Eleitor não vota em candidato que não conhece. É óbvio que nesta fase inicial
há uma enorme diferença entre o grau de conhecimento de Lula e o dos demais
pré-candidatos. Com o andamento da campanha e o crescente conhecimento dos
demais candidatos, este quadro inicial de preferências pode mudar.
Considerações como estas certamente não são ignoradas
pela equipe política de Lula e devem justificar a necessidade de politizar seu
julgamento, de mantê-lo no centro do processo eleitoral por via de
controvérsias, mesmo que não possa concorrer.
*Professor de ciência política, ex-reitor da UFRGS, é
criador e diretor do site ‘Política para políticos’