Eliane Cantanhêde: Gilmar, o Quixote
Em sua cruzada, o ministro enfrenta o senso comum nos
vazamentos e no caso,
Publicado no Estadão
Os políticos estão no olho do furacão, mas o caso do
ministro Gilmar Mendes é particularíssimo, neste momento que ele mesmo chama de
“tempestade perfeita” e de “crise sem precedentes”: ninguém jogou Gilmar no
olho do furacão, ele mesmo é que se jogou de corpo, alma, mente, com um
espantoso desdém às críticas e alertas.
Ministro do STF e presidente do TSE, Gilmar resolveu agir
tal qual um Quixote, de armadura e lança em punho, lutando contra o senso comum
e todos os moinhos de vento e de notícias. Se sopram para um lado, ele sopra
para o outro, abrindo flancos na opinião pública, na Justiça, na PGR, na PF, na
Receita e, agora, na sua própria casa, o Supremo. No cafezinho que antecedeu a
posse do ministro Alexandre de Moraes, Gilmar circulava mais à vontade entre os
políticos do que entre seus pares de toga.
O problema não são as ideias, porque muitos defendem o
mesmo que
Gilmar: é preciso depurar as práticas políticas, combater
a corrupção e preparar o País para novos tempos, mas sem explodir os três
Poderes.
O problema é a forma. Antigamente, “juízes não falavam
fora dos autos”. Atualmente, falam sobre tudo, o tempo todo, mas não devem
tomar partido tão apaixonadamente.
Gilmar Mendes não precisava ir dormir com o ataque do
procurador-geral Rodrigo Janot, condenando a “disenteria verbal”, a
“decrepitude moral”
e o “cortejar desavergonhadamente o poder” (referência às
frequentes visitas de Gilmar a Temer). Com sua coragem pessoal e autoridade
jurídica, o ministro não deveria gastar sua energia no treino, correndo o risco
de entrar em campo capenga, ou estropiado, para os julgamentos da Lava Jato.
Precisa se preservar.
Em sua cruzada, Gilmar defende que o foro privilegiado
não é sinônimo de impunidade e autoridades não podem nem devem ser jogadas para
instâncias inferiores suscetíveis a paixões eleitorais e interesses locais. Faz
sentido, é uma contribuição a um debate crescente, que pode chegar a um
meio-termo: manter o foro, mas criando instâncias específicas para aliviar o
atual peso no Supremo.
Ele também se irrita com os vazamentos. Já ameaçou
“descartar” as delações da Lava Jato que foram divulgadas e mandou abrir
sindicância sobre o vazamento dos depoimentos da Odebrecht ao TSE. Diz que
quebra de sigilo é crime e não admite, sobretudo, a exposição de nomes sem que
nem eles nem a sociedade saibam exatamente como, onde e por que entram na
história. O ministro, porém, sabe que vazamentos sempre ocorreram e sempre
ocorrerão. E, como diz o juiz Sérgio Moro, a imprensa está no seu papel de
divulgar.
A polêmica mais complexa em que Gilmar Mendes se meteu,
porém, é a do caixa 2. Ele não apenas defende uma anistia “no momento oportuno”
como a compara à repatriação de valores enviados ao exterior e não declarados
oficialmente. Na anistia ao caixa 2 de campanha, como na repatriação, seriam
excluídos os recursos ilícitos na origem, obtidos por corrupção, por exemplo, e
sujeitos a punição penal.
É exatamente isso o que a esquerda, o centro e a direita
discutem freneticamente no Congresso, para separar o “joio” (os corruptos, os
que desviaram dinheiro público) e o “trigo” (os que “só” receberam dinheiro de
caixa 2, inclusive porque o doador não aceitava ser publicamente identificado).
Mas é preciso combinar com “os russos”: a opinião
pública, que nem sempre leu, nem sempre viu, nem sempre ouviu, mas já tirou
suas conclusões e quer sangue, torcendo o nariz para qualquer negociação.
Se ainda não está, logo essa mesma opinião pública ficará
ressabiada com a valentia de um ministro tão particular do STF e do TSE, que
pode até ter razão no conteúdo, mas é um contumaz descuidado com a forma.