A gramática do ódio
Por marco aydos
Com Aristóteles nos aproximamos do ódio pela superfície.
Aprendemos que a gente sente raiva no varejo, seja de Sócrates ou de
Cálias, mas ódio a gente tem por atacado. O verbo do
ódio, miseîn, está no radical do ódio aos gêneros,misandria,
misoginia. O ódio não tem afinidades eletivas: quem odeia um gênero de
pessoas, um tipo, uma classe (genus, no original aristotélico) odeia
indistintamente todos os indivíduos dessa classe.
Na temporalidade, o ódio também se distingue da
indignação: a raiva passa, a gente vai se cansando de ter raiva, vai
esquecendo, e eventualmente caminha para o esquecimento artificial: o difícil
trabalho do perdão, nutrido pelo amor. O ódio não termina enquanto não
mata o alvo inocente, aleatório. Em uma página de seu diário, Imre Kertész
cunhou a expressão “ódio platônico aos judeus” para definir o antissemitismo,
porque mesmo onde não existem judeus existe antissemitismo (Kertész,
Imre. Diario de la galera. Tradução de Adam Kovasics. Barcelona:
Acantillado, 2004. p. 182).
Todo antissemita cultua o ódio. Está, por assim dizer,
acostumado ao ódio. Não tem dificuldade de acionar esse ódio para uma nova
classe quando lhe convém.
O novo PT, renascido das cinzas do antigo partido dos
trabalhadores, começou a cultivar o ódio ainda em sua fase de apogeu no poder.
Desde março de 2010, quando Lula visitou Israel, a política externa brasileira
foi explicitamente antissemita. Aproximando-se a crise, o PT só fez transformar
seu espírito pela internalização, para a política doméstica, do antissemitismo
que praticava na política externa.
Ferenc Fehér analisou de modo rico a teoria política de
Arendt, chamando nossa atenção para a estrutura do livro As origens do
totalitarismo. Arendt não começa pelas definições políticas gerais para chegar
a casos concretos que seriam exemplos, mas discute longamente a exceção, o
fenômeno do antissemitismo. Da análise do judeu transformado em pária, em
oposição ao cidadão, a autora chega à essência da política, que é a cidadania,
o direito a ter direitos. E então se permite exportar, por analogia, a condição
de pária do judeu para todos os que são destituídos de cidadania. [Fehér,
Ferenc. “The pariah and the citizen (On Arendt’s political theory)” in Heller,
Agnes & Fehér, Ferenc. The postmodern political condition. New York:
Columbia University Press, 1988. p. 89-105].
Segundo reza a lenda, o PT teria promovido uma revolução
social em uma década de poder.
Essa revolução teria sido traída pelos reacionários, os
“suspeitos de sempre”, os inimigos da revolução. Todo reacionário inimigo da
revolução precisa ser eliminado, para que a revolução prossiga. Mas não é
possível matá-los fisicamente. O partido do ódio e seus intelectuais nos
mataram, em substituição, em nossa cidadania.
A maldição da classe média pronunciada por Marilena Chauí
foi apenas o discurso inaugural do ódio político do novo PT, em 2012, quando a
situação terminal do paciente já se avizinhava.
Mas foi na crise que conduziu ao afastamento de Dilma
Rousseff da Presidência da República que os intelectuais da nova ordem foram
trabalhando, a uma só voz, apesar da espontaneidade do coro, o processo de
desconstituição da categoria política povo. O ódio à classe média é o
insulto que opera essa desconstituição. Não se encontra um único defensor da
falácia do golpe que não insulte a classe média.
Desde a história política aparentemente acadêmica de
Bresser-Pereira, passando pela recente história do PT por André Singer,
até jornalistas como Eliane Brum e Luís Fernando Veríssimo, todos tocam
no mesmo compasso, variando apenas algumas melodias incidentais.
A hipocrisia é o insulto clássico.
Mas o rol de perversidades da classe média brasileira é
curiosamente povoado por reminiscências do ódio moderno aos judeus. Os coxinhas
seriam adoradores do capital, egoístas, escravocratas, parasitas.
Bresser-Pereira e André Singer convergem no reducionismo,
moeda corrente entre os economistas e sociólogos do novo partido do ódio: a
classe média teria uma única ocupação, a de rentista.
Seríamos mentirosos, insensíveis, com inveja dos pobres,
porque teriam, segundo o conto de fadas do PT, subido para a classe C e ficado
mais parecidos conosco.
Outra analogia com o ódio platônico aos judeus está na
recusa à humanidade do alvo inimigo. Joel Kotek
(http://jcpa.org/article/major-anti-semitic-motifs-in-arab-cartoons) refere o
zoomorfismo entre os motivos recorrentes em cartoons árabes. Um dos modos de
insultar está na desumanização do adversário, retratado como animal. São
frequentes os desenhos de judeus como aranhas, cobras, eventualmente porcos,
mas sobretudo polvos com a poderosa imagem de poder, em cujos tentáculos são
representadas as vítimas da hora. A bestialização reforça os insultos clássicos
contra os ricos, contra os capitalistas, contra as grandes fortunas,
todos, enfim, parasitas. No auge da crise, os coxinhas fomos retratados pelos
intelectuais governistas como cães. Mas não cachorrinhos dóceis, domésticos.
Éramos cães raivosos. Agosto de 2015 foi nosso “mês de cães danados”.
A gramática do ódio pela desumanização é explícita em
dois textos contemporâneos. Um deles, a coluna “Vácuo”, do Luís Fernando
Veríssimo, no Estadão de 20/8/2015, brindou-nos com esta interessante
analogia:
“Houve um tempo em que os cachorros corriam atrás dos
carros. Era uma cena comum: vira-latas perseguindo carros, latindo, como se
quisessem expulsar um intruso no seu meio. Às vezes, viam-se bandos de cães
indignados perseguindo carros que passavam e dava até para imaginar que um dia
conseguiriam alcançar um, dos pequenos, pará-lo, cercá-lo e… E o quê? Comê-lo?
Nunca ficou claro o que os cachorros fariam se alcançassem um carro. Era uma
raiva sem planejamento. (Hoje, a cena de cachorros correndo atrás de carros é
rara. Os cachorros modernizaram-se. Renderam-se ao domínio do automóvel. Ou
convenceram-se do seu próprio ridículo).
“Os manifestantes contra o governo sabem o que não querem
– a Dilma, o Lula, o PT no poder -, mas ainda não pensaram bem no que querem.
Se conseguirem derrubar o governo, que cada vez mais se parece com um Fusca
indefeso sitiado por cães obsoletos, o que, exatamente, pretendem fazer com o
vácuo?”
Preparando o nosso mês de cães danados, Eliane Brum
brindou-nos com sua coluna no El País, de 22/07/2015, com sugestivo
título, no mesmo tom de Veríssimo: “Por quem rosna o Brasil”.
Vale a pena reler o texto, mais longo que o de Veríssimo,
no contexto da gramática do ódio que estamos expondo. A entonação geral segue
na melodia do anticapitalismo romântico, receita de sucesso comprovada pela
extraordinária recepção contemporânea da pobreza de filosofia de um Zygmunt
Bauman.
Em discurso regado a fel, do início ao fim,
e preconceito, Eliane não tem pudor na injustiça aos evangélicos, cujos
pastores seriam “personagens paradigmáticos do Brasil atual … mediocridade
barulhenta e perigosa”. Difícil encontrar o elo de ligação entre uma coisa e
outra, mas esse preconceito gratuito serve de reforço para o perfil de Dilma
Rousseff, retratada como vítima dos cães raivosos e obsoletos:
“acuada por ameaças de impeachment mesmo quando (ainda)
não há elementos para isso, … um personagem trágico. Vendida por Lula … como
‘mãe dos pobres’, ela nunca foi capaz de vestir com desenvoltura esse figurino
populista, até por sinceridade.”
A matilha de cães danados andou solta pelas ruas em
agosto de 2015. Éramos “os protagonistas das manifestações de 2015 [que] gritam
também para manter seus privilégios”, e rosnam porque não estariam
dispostos “a perder para estar com o outro”.
Para coroar o insulto clássico do mês de cães danados,
vale lembrar de novo o discurso fundador do novo PT, em que Marilena Chauí já
anunciara a boa nova:os cães ladram mas a caravana passa, então a caravana está
passando. [8min30seg do discurso de 2012, publicado no youtube em 2 de maio de
2014: <https://www.youtube.com/watch?v=fdDCBC4DwDg> consulta em
22/4/2015). Ela só esqueceu de dizer que o cocheiro da caravana vai passando
carregado de ouro, roubado pelo caminho.
A gramática do ódio é expressiva de um ódio
indestrutível, que possivelmente nasce do subterrâneo da humanidade. Talvez não
seja coincidência que o treinamento no ódio, pela eliminação física de cães, já
tenha de fato acontecido, durante a ocupação da antiga Tchecoslováquia pelos
russos, pós-1968. Kundera conta o episódio.
“Tereza lembra-se de uma notícia de duas linhas que lera
no jornal há uns dez anos: dizia que numa cidade da Rússia todos os cachorros haviam
sido mortos. Essa notícia discreta e aparentemente sem importância tinha-lhe
feito sentir pela primeira vez o horror que emanava desse imenso vizinho.
“Era uma antecipação de tudo que viria depois: nos dois
primeiros anos que se seguiram à invasão russa, não se podia ainda falar em
terror. Já que toda a nação desaprovava o regime de ocupação, era preciso que
os russos encontrassem entre os tchecos homens novos e os levassem ao poder.
Mas onde encontrá-los, uma vez que a fé no comunismo e o amor pela Rússia eram
coisa morta? Foram procurar entre aqueles que alimentavam intimamente o desejo
de se vingar da vida. Era preciso soldar, alimentar, manter alerta a
agressividade deles. Era preciso treiná-los contra um alvo provisório. Esse
alvo foram os animais.
“Os jornais começaram então a publicar uma série de
artigos e a organizar campanhas de cartas de leitores. Exigia-se, por exemplo,
o extermínio dos pombos … As pessoas estavam ainda traumatizadas com a
catástrofe da ocupação, mas os jornais, o rádio, a televisão, só falavam nos
cachorros que sujavam as calçadas e os jardins públicos, ameaçando a saúde das
crianças, cachorros que não serviam para nada e ainda tinham que ser
alimentados. Fabricou-se uma verdadeira psicose … Um ano mais tarde, o ódio
acumulado (ensaiado primeiro nos animais), foi para o seu verdadeiro alvo: o
homem. As demissões, as prisões, os processos começaram. Os animais puderam
enfim respirar.” (Kundera, Milan. A insustentável leveza do ser, Nova
Fronteira, 1985, p. 290).
O povo nas ruas, em agosto de 2015, desaprovou o regime
de ocupação do poder pela organização criminosa que o assaltou.
Era preciso encontrar homens e mulheres novos para apoiar
a ordem. Mas onde encontrá-los?
Foram procurar entre aqueles que alimentavam intimamente
o desejo de se vingar da vida. Era preciso soldar, alimentar, manter alerta a
agressividade deles. Era preciso treiná-los contra um alvo provisório. Esse
alvo fomos nós, os coxinhas, a classe média. Pela nova terminologia do poder,
não seríamos mais cidadãos, mas gente que rosna de medo de perder o osso,
matilha de cães obsoletos.