As eleições não terão o condão de unir esta Pátria em
frangalhos e escombros e sem futuro
Espere mais um pouco. Este ano da (des)graça de 2015 não
acabará amanhã nem talvez em mais 12 meses: ele tem tudo para se arrastar pelo
menos até o réveillon de 2019, quando só então a esperança poderá ressurgir.
Militantes ocultos, embalados pelos eflúvios da ceia
natalina, apostam que as facas voltaram às bainhas e o pó da rua assentou desde
que a dissidência liderada por Barroso, o copioso, deu vitória parcial (que
pode se tornar de Pirro) ao desgoverno Dilma há duas semanas. Ledo e ivo
engano! A maioria governista flutuante (de 5 a 8, mais o voto de Minerva de
Lewandowski sempre a favor) decretou a intervenção do Judiciário, de início,
sobre o Legislativo e, em seguida, sobre nossa língua materna, que está ficando
menos culta e mais feia.
Pois o artigo 51, parágrafo 1.º, da Constituição vigente,
pelo menos até segunda ordem na próxima sessão plenária do Supremo Tribunal
Federal (STF), reza: “Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I –
autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o
Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado”. Ao transferir
para o Senado o poder de abrir o processo, avalizado por maioria de dois terços
dos deputados, o STF deu ao verbo um sentido que o dicionário do mestre Houaiss
não reconhece entre uma miríade de significados: o de apenas encaminhar.
Autorizar quer dizer: tornar lícito, permitir, dar permissão a, consentir, dar
direito a, dar motivo a, possibilitar, tornar válido, abonar, justificar e
validar.
Mais subversivo ainda foi dar ao advérbio de modo
privativamente, que significa exclusivamente, singularmente, especificamente, o
sentido de subsidiariamente, cuja palavra latina, de que decorre no vernáculo,
representa algo “na reserva, na retaguarda”. Com a troca semântica, o STF
dispôs-se a atuar como Poder não autônomo (para Houaiss, “dotado da faculdade
de determinar as próprias normas de conduta, sem imposições de outrem”), mas
submisso (“disposto à obediência”, idem).
De volta à História: por que, além de provar a
subserviência do Judiciário ao Executivo, a vitória de Dilma não seria parcial
e lembraria a do rei de Épiro e Macedônia, ao lamentar uma batalha vitoriosa
por ter nela perdido tantos soldados que passou a considerar a consequência
inevitável da derrota na guerra? É que, numa prova de que o cérebro não é sua
arma favorita, a presidente Dilma, no dia seguinte a esta, em vez de estender a
mão à Nação, que amarga índices apavorantes de queda de atividade econômica,
emprego e renda e inflação e dólar em alta, para buscar a conciliação para sair
do atoleiro, enfiou o pé no acelerador: deixou de fingir que acenava ao
mercado, abraçou o populismo e beijou o desastre.
Cérebro também não é o forte do candidato que ela
derrotou em 2014. Aécio Neves flertou com o presidente da Câmara, Eduardo
Cunha, cuja popularidade é pior que a de Dilma, e assistiu de camarote à
humilhante derrota da batalha nas ruas ao escolher outra banda podre da maçã.
Depois, cuspiu na face da alternativa de poder à mão, Michel Temer, e correu
para casa, de onde, aliás, parece nunca ter saído.
Ambos provam ao povo traído, irado e ressabiado que vale
a descrição sempre atual do historiador Sérgio Buarque, que definiu como
cordial (de cordialis, coração em latim medieval) a desfaçatez sem pudor do
brasileiro na mistureba viciosa do público com o privado.
Chefe do governo e líder da oposição já confundiram muito
rua e casa e agora mostram ter coração duro, sem coragem nem compaixão. No Rio,
Dilma inaugurou o Museu do Futuro, exata metáfora da evidência de que o País do
porvir, previsto por Stefan Zweig, fica cada vez mais distante deste. Agora temos
até um museu para celebrá-lo, já que do passado nunca ninguém cuidou. E ela não
voltou para consolar os pobres aflitos morrendo feito insetos às portas dos
hospitais públicos fluminenses.
Mauricio Macri aborda as vítimas das enchentes na
Argentina e Dilma as sobrevoa de helicóptero: ele sabe que governo implica
compromisso com o povo; ela acha que é só ficar no poder e, com seu estilo
tatibitate, repete diuturna e noturnamente a decisão histórica do imperador
fanfarrão. Aécio não foi ao Sul nem deu atenção à devastação do Rio Doce pela
lama tóxica no Estado onde nasceu, que governou e no qual foi por ela
derrotado.
Para Elizabeth Bishop, o órgão mais utilizado pelo
brasileiro é o fígado. A presidente não perturba o dela lidando com desgraças
ao rés do chão e a céu aberto. O senador distribuiu em redes sociais cartões de
um Natal de comercial de margarina no apartamento em que arrastões na praia de
Ipanema não azedam seu humor. Dilma preferiu indultar petistas condenados pelo
STF no mensalão e se solidarizar com um aliado bebum, ofendido no Leblon por
bêbados do lado de lá, a consolar vítimas da microcefalia, da doença pública no
Rio e da lama tóxica em Minas.
É tolo esperar que neste conflito nossa Pátria em
frangalhos e escombros se una nas eleições que prenunciam mais do mesmo: em
2016, dona Marta do PT disputará a Prefeitura de São Paulo com seu Haddad do
padim Lula? Em 2018, Aécio, Serra e Alckmin terão triunfo inusitado ou mais um
fiasco?
Haverá uma regata olímpica à ré na Baía de Guanabara,
descrita como “nojenta” pelo holandês Dorian van Rijsselberghe, campeão em
Londres-2012 na classe RS:X? Ele teve de tirar sacos plásticos do casco do
barco para vencer a Copa Brasil de Vela. E o mal-estar de um membro de sua
equipe denota que estamos com o intestino solto.
Em seis meses, os coliformes fecais guanabarinos, os
dejetos metálicos da Samarco, a seca e a microcefalia no Nordeste e os
incêndios na Amazônia e na Bahia ganharão o mundo, mas não mais conquistando o
planeta, como nos tempos do charme imbatível de Lulinha Paz e Amor. A nós,
desde o tempo da Confederação dos Tamoios, só nos resta recolher os cacos e
enterrar os ossos.
(*) José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e
escritor.