Três grandes fenômenos em curso irão mudar completamente
o negócio da televisão. A 'Netflixazação' é apenas um deles
Omarson Costa*
Na década de 20, o tempo médio de vida de uma grande
empresa era de 90 anos. A partir de 1950, a expectativa caiu para 60 anos.
Hoje, em tempos de startups e disrupção digital, a sobrevivência está em uma
taxa adolescente de apenas 17 anos.
Assim como a inovação radical advinda da digitalização
dos negócios vem atingindo todos os setores que conhecemos, do transporte ao
delivery de comida, dos bancos ao agronegócio, do varejo à indústria, o mercado
de entretenimento também não será (já não está sendo) poupado. E isso inclui
sua TV.
Para ser mais preciso, três grandes fenômenos já em curso
irão mudar completamente o negócio da televisão: a chegada do 5G; o movimento
das empresas OTTs (Over the Top), com especial atenção aos OTTs de esportes e a
mídia programática. Vamos destrinchá-los.
Que venha o 5G
A primeira grande onda virá, claro, do mesmo oceano: a
rápida evolução das novas tecnologias de telecomunicações e da Internet. Seu
nome é 5G. Com o lançamento da nova rede, navegaremos em uma velocidade de
1Gb/s, 50 vezes mais rápida que a 4G, e receberemos imagens em alta definição
passando do padrão 4k para o 8k.
Para o leitor que não está familiarizado sobre como
funciona a tecnologia que faz sua TV funcionar tentarei simplificar em uma
linguagem bem simples. A transmissão de imagem e som necessita de antenas
(estas que ficam nos topos de prédios e montanhas) que enviam os sinais aos
receptores (os aparelhos de TV). Em São Paulo, onde moro, elas estão em locais
mais altos como a Avenida Paulista e o Pico do Jaraguá.
Internet
Apple começa a vender gift cards para App Store e iTunes
no Brasil
Estas antenas e receptores funcionam a uma “determinada
velocidade”. Hoje, estas antenas “conversam” apenas com sua TV. O 5G virá
agregar tudo, trazendo a tão anunciada “Internet das Coisas”. No final do dia,
tudo fará parte da Internet e sua TV também integrará esta lista de coisas
conectadas. Desta forma, as operadoras de telecomunicações poderão “transmitir”
imagem e som de qualquer lugar do planeta. Na prática, você poderá assistir (ao
vivo ou não) qualquer conteúdo de qualquer lugar do mundo.
E o que isso significa? Que a realidade da TV do futuro
está mais próxima do que você imagina e que, muito em breve, a experiência
predominante em frente à telinha será, cada vez mais, a mesma do computador e
do smartphone. Em outras palavras, nós quem decidiremos o que, quando e onde assistir
nossos programas preferidos; na SmartTV, no PC, no tablet, no celular ou em
telas dobráveis que levaremos no bolso.
Em 2004, afirmei em um debate que o futuro do conteúdo
passaria pelas redes das operadoras. Minhas premissas foram bem simples. Primeiro
porque o custo de “entregar” conteúdo através das redes IP seria mais barato e
conveniente do que qualquer outra rede. Segundo porque as redes IP estavam
tornando-se móveis (celular e tablets). Seria apenas uma questão de tempo.
Bingo! Este tempo chegou!
Com o avanço do 5G, qualquer um, qualquer empresa poderá
se tornar um broadcast onde quer que esteja. E, ao mesmo tempo, nós, os
“tele(IP)spectadores”, vamos ter o poder de escolher se queremos ou não
assistir comerciais. Nós iremos montar nossas “grades de programação” (aliás,
grade é uma palavra desagradável, que remete à prisão).
E o que isso tudo quer dizer?
Que o modelo de negócios da TV linear que sustentou as
redes de TV durante quase 70 anos, poderão ser seriamente impactados. Basta
dizer que das 10 maiores empresas de tecnologia do mundo, todas (sim, todas),
de uma forma ou de outra, faturam alto com a venda de mídias digitais e
notícias. Das 15 maiores, exceto a PayPal não tem como core business o setor de
mídia, mas é uma grande provedora de ferramentas que viabilizam as transações
online, ou seja, é o motor destas empresas.
Internet
Anunciantes boicotam YouTube após comentários de
pedófilos em vídeos infantis
Agora, notem só, quase todas elas são “novos players” que
estão pavimentando as estradas para a “Internet TV” que, quando menos
esperarmos, irá se transformar no “novo eletrodoméstico” da família, uma
telinha através da qual iremos controlar nossas vidas e não só assistir nossas
séries prediletas.
E o que significou a TV até os dias de hoje? Bem, nos
últimos 70 anos, ela foi um aparelho estático em sua casa. No futuro, será uma
tela que te acompanhará em qualquer lugar. Um aplicativo. Um serviço. Um novo
gadget para comunicação, compras, pesquisa e o que mais puder imaginar. Muito
mais do que só entretenimento.
A nova TV será anabolizada pela segunda disrupção: o
avanço das OTTs. A matemática que está atraindo estes gigantes é bem simples.
Somos aproximadamente 7 bilhões de pessoas, das quais cerca de 4 bilhões estão
conectadas na Internet. A primeira empresa do planeta a se autodenominar
“Internet TV” foi a Netflix, a maior deste novo modelo com 139 milhões de
assinantes.
Suponha que a Internet parasse de crescer e estacionasse
nos mesmos 4 bilhões de usuários. A Netflix ainda poderá alcançar 3,864 bilhões
de consumidores adicionais para assinar o serviço. É ou não é um bom negócio?
Com a chegada do 5G, não é difícil imaginar que muitos
consumidores deverão preferir assinar os serviços OTTs, como, além da Netflix,
Amazon Prime, Hulu, YouTube Premium, HBO, NET NOW, GloboPlay e, num futuro
breve, a Disney+.
Pense bem. Se o conteúdo que você quer acessar estiver no
Facebook ou no YouTube, por que você irá ligar sua TV? E se você não ligar sua
TV, não assistirá as propagandas. E se não assistir as propagandas, a receita
das agências de publicidade e dos veículos (emissoras de TV) serão
provavelmente afetadas. Todo o ecossistema será possivelmente afetado.
Quer números? Basta constatar que 45% dos brasileiros já
são “telespectadores” do YouTube e 50,6% do Facebook, segundo a eMarketer.
E a publicidade, como fica?
A terceira disrupção será no setor de publicidade. Ela
continuará sendo, claro, uma fonte importante de receita, mas não mais no
modelo “intervalo comercial de 30 segundos”. Nos Estados Unidos, a Amazon, que
lançou o site IMDb Free Dive, oferece um grande catálogo de filmes e séries
gratuitamente, todos patrocinados pelos anunciantes. É algo similar ao YouTube,
mas sem a distração de uma avalanche de conteúdos, oferecendo um catálogo mais
“selecionado”.
Mas o ponto principal que vai tirar o sono das agências
de publicidade, especialmente dos profissionais de mídia, é que na nova TV
Digital a mídia será cada vez mais programática e baseada em algoritmos,
entregando filmes publicitários com maior poder de conversão na medida em que o
provedor conhecer mais e mais os hábitos de quem assiste (ops, navega na) TV.
E não vamos esquecer que o telespectador pode desabilitar
o ACR (Automatic Content Recognition) da sua SmartTV para assegurar sua
privacidade (diga adeus ao IBOPE), o que o impedirá de receber ofertas
personalizadas, ou dar um ‘skip’ no comercial depois de alguns segundos, da
mesma maneira que “zapeia” por outros canais quando entra o intervalo.
Em resumo, as grandes redes de TV precisarão buscar novos
modelos sustentáveis, já que o controle agora será da audiência que, se não
gostar do que vê, simplesmente irá pular da TV para o VOD e outras plataformas
para assumir o comando da programação.
Internet
Filme ‘Capitã Marvel’ será exclusivo do Disney+ após sair
dos cinemas
De acordo com um estudo da Ampere Analysis, este ano as
receitas globais com assinaturas de serviços de streaming OTT (over-the-top)
irão alcançar US$ 46 bilhões e superar as vendas globais de ingressos de
cinema, que deverão fechar o ano em US$ 40 bilhões. Será que as salas de cinema
irão resistir aos novos tempos com um ticket tão caro? Mais: segundo relatório
da Rethink Technology Research, o tempo médio de horas assistidas do VoD irá
ultrapassar o tempo médio da TV em 2023.
Quais então os desafios da TV do futuro?
Para se defender da propaganda política americana e
modernizar a propaganda nacional, a indústria de cinema da China vem lançando
filmes como “Wolf Warrior 2”, que conta a história de um soldado chinês na
África que salva as vidas de centenas de compatriotas e africanos dos ataques
dos mercenários americanos. O filme termina com uma mensagem na tela: “Cidadãos
da República da China, quando se depararem com o perigo em terras estrangeiras,
não desistam! Lembrem-se que vocês têm o apoio de uma pátria-mãe forte”,
levando os espectadores chineses ao delírio e a até mesmo a cantar o hino
nacional na sala de exibição, conforme relata matéria da Economist. O filme
levantou US$ 870 milhões, dez vezes seu antecessor “Wolf Warrior” lançado em
2015.
A TV, o cinema, a música, o teatro e as outras formas de
mídia e arte criam a cultura e a identidade de um país ao longo do tempo. A
Internet está quebrando isto e “globalizando” a cultura no formato dos
aplicativos de conteúdo. Pare por um segundo e imagine a cena de uma criança
chinesa assistindo o “Capitão América” salvando o planeta. Você consegue
imaginar o governo chinês permitindo toda uma geração de jovens idolatrando
heróis americanos? É capaz de visualizar um conteúdo “inadequado” (respeitando
as regras de censura de cada país) sendo transmitido em países com culturas
rígidas, como os países de religiões mais conservadoras?
Este é o novo poder da “Internet TV”, que traz consigo a
publicidade global (hoje sob o domínio do Google, do Facebook e das outras
gigantes da tecnologia) que, por sua vez, traz a mídia programática. Com uma
base crescente de equipamentos prontos para rodar na rede 5G e a total quebra
de paradigmas, cabe perguntar: para que servirão as leis brasileiras (e mundiais)
existentes de “radiodifusão” e do “cabo”?
Como podemos manter uma cultura de conteúdo nacional e ao
mesmo tempo abrir o mercado de conteúdo aos estrangeiros? Deveremos seguir o
modelo da China e da Rússia, que anunciou que poderá fechar o acesso aos
servidores internacionais de Internet, e restringir nossas fronteiras ao
conteúdo estrangeiro? Ou devemos abraçar o mundo FAANG (Facebook, Apple,
Amazon, Netflix, Google)?
Internet
Claro e NET firmam parceria com Netflix para integrar
serviço de streaming
Atualmente, a licença dos canais de TV aberta é obtida
através de concessão do Estado e a legislação determina que todas as emissoras
de rádio e TV deverão ter ao menos 70% do capital total e do capital votante de
propriedade direta ou indireta de brasileiros natos ou naturalizados há mais de
dez anos, que serão responsáveis pela administração dos canais e irão
estabelecer o conteúdo da programação.
É uma lei aplicável para TV da época de Assis
Chateubriand, mas que deixa uma série de lacunas e questões para os dias
atuais. Ela pode funcionar quando, como foi até hoje, a transmissão é feita
pelos donos das concessões com a mesma antena instalada na Avenida Paulista
décadas atrás. Mas esta lei não funciona neste novo mundo.
Da mesma forma, a “Lei do Cabo” determina cotas de
conteúdo na programação. O problema é que o VoD não tem programação porque não
existe “grade”. Portanto, não adianta encher o catálogo com conteúdos nacionais
se os consumidores não desejam assistí-los.
Se a rede IP permite transmitir pela Internet o que
qualquer produtor de conteúdo quiser, não é o caso de criar uma lei adequada
aos novos tempos que possibilite tanto exportar nossas produções quanto
estabelecer controles que preservem nosso patrimônio e identidade cultural?
São todas perguntas e reflexões ainda sem respostas
“certas” porque, assim como nos outros setores, os legisladores não conseguem
acompanhar a velocidade do avanço tecnológico. Foi assim com o Uber. Foi assim
com o Airbnb. Foi assim com o Napster, que deu início ao fim da indústria
fonográfica, lembram? Está sendo assim com as editoras de jornais e revistas em
todo mundo. E, ao que tudo indica, será assim também com sua TV.
É bom ficar ligado.
(*) Omarson Costa é formado em Análise de Sistemas e
Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua
carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e
Internet