- O autor é advogado e presidente do Observatório Social de São Leopoldo, RS.
A economia chinesa demonstra uma força impressionante, com crescimento de 5,4% no 4º trimestre de 2024, superando as estimativas de mercado e atingindo sua taxa mais forte em um ano e meio. Este desempenho, impulsionado por medidas de estímulo estratégicas, contrasta com os desafios enfrentados pelas economias ocidentais, gerando um paradoxo fundamental para as democracias.
A China, uma república socialista dirigida pelo Partido Comunista, sem as liberdades típicas do Ocidente, conseguiu em aproximadamente 40 anos transformar-se de um país predominantemente agrário em uma potência industrial e tecnológica global. Este sucesso levanta questões sobre a eficácia comparativa dos sistemas políticos.
O modelo chinês apresenta características que facilitam seu desenvolvimento econômico acelerado:
Continuidade política: Sem os ciclos eleitorais de 4-6 anos das democracias, a China mantém planejamento de longo prazo
Centralização decisória: Capacidade de mobilizar recursos nacionais rapidamente para objetivos estratégicos
Ausência da "burocracia democrática": Implementação mais ágil de políticas econômicas e industriais
Controle estatal estratégico: Direcionamento de investimentos para setores prioritários
Os resultados são evidentes: a China produz atualmente 1/3 de todos os carros do mundo, e apenas em 2024 fabricou o equivalente a 12 anos de produção do mercado brasileiro.
A ascensão da China como potência industrial é particularmente evidente no setor automobilístico, onde está ocorrendo uma transformação dramática na distribuição de poder de mercado. Dados da Associação Chinesa de Automóveis de Passageiros (CPCA) revelam uma mudança estrutural profunda: a participação das montadoras estrangeiras nas vendas de automóveis na China despencou de 53% em julho de 2022 para apenas 33% no mesmo mês de 2024, enquanto as marcas chinesas saltaram de 47% para expressivos 67% do mercado.
Esta transformação não se limita apenas à perda de participação de mercado, mas também impacta severamente a rentabilidade das empresas ocidentais e asiáticas. A Toyota, gigante japonesa que por décadas manteve posição dominante em mercados globais, viu a renda de suas joint ventures chinesas despencar 73% em comparação com o ano anterior, conforme revelam suas demonstrações financeiras do trimestre encerrado em 30 de junho. Mais alarmante ainda é a situação da General Motors, cujas joint ventures na China (dez no total) relataram perdas trimestrais consecutivas em 2024, com suas vendas no país caindo pela metade, de um pico de mais de 4 milhões de veículos em 2017 para apenas 2,1 milhões no ano passado.
Esta inversão de domínio no maior mercado automobilístico do mundo não representa apenas uma mudança temporária, mas sinaliza o fim de uma era de dominância ocidental e japonesa no setor, com profundas implicações para as economias que dependem da indústria automobilística como motor de crescimento, geração de empregos qualificados e arrecadação tributária.
Para países como Alemanha, Japão e Estados Unidos, esta perda de competitividade representa um desafio existencial para um setor que historicamente sustentou sua prosperidade econômica e financiou parte significativa de seu estado social.
As democracias ocidentais enfrentam agora um dilema profundo. Para competir com a China, precisam encontrar formas de otimizar recursos e aumentar a eficiência econômica. No entanto, carregam o compromisso com o estado social, que garante:
Sistemas de saúde universal
Aposentadorias e pensões
Seguro-desemprego
Educação pública
Direitos trabalhistas
Estes direitos e garantias, conquistas históricas das sociedades democráticas, representam custos significativos para empresas e governos, reduzindo sua competitividade global quando comparados ao modelo chinês.
O reconhecimento da desvantagem competitiva europeia frente à China está provocando mudanças significativas no ambiente regulatório do continente. Em 26 de fevereiro de 2025, a Comissão Europeia apresentou um pacote abrangente de medidas para simplificar suas regulações de sustentabilidade, com a justificativa explícita de reduzir os custos de adequação às regras e proteger a competitividade das empresas do bloco.
Esta iniciativa representa uma economia estimada de quase 40 bilhões de euros para as empresas europeias, um montante significativo que revela a magnitude do impacto que as regulações ambientais, sociais e de governança (ESG) têm exercido sobre a competitividade do setor produtivo europeu.
O objetivo declarado desta flexibilização é "reduzir a complexidade das exigências da UE para todas as empresas, notadamente pequenas e médias".
Esta mudança de abordagem representa uma inflexão estratégica importante, pois transfere o foco dos reguladores para as companhias de grande porte, que têm "maior impacto no clima e no meio ambiente", aliviando a pressão regulatória sobre o vasto tecido de pequenas e médias empresas que constituem a espinha dorsal da economia europeia e são particularmente vulneráveis à concorrência chinesa.
Esta flexibilização regulatória marca uma inflexão importante na trajetória política europeia, que nas últimas décadas havia consistentemente ampliado as exigências ambientais e sociais sobre suas empresas.
O afrouxamento das regras ESG sinaliza um reconhecimento tácito de que o custo da transição verde e da responsabilidade social corporativa, quando imposto unilateralmente às empresas europeias, cria desvantagens competitivas insustentáveis frente a concorrentes chineses que não enfrentam restrições semelhantes.
A decisão europeia ilustra o dilema central enfrentado pelas democracias ocidentais: como manter compromissos com sustentabilidade ambiental e responsabilidade social – valores fundamentais da identidade europeia contemporânea – enquanto enfrenta uma competição acirrada com um modelo econômico que não internaliza estes custos?
Esta tensão entre valores e competitividade econômica representa um dos aspectos mais visíveis do paradoxo democracia-competitividade no século XXI.
A situação europeia exemplifica dramaticamente este paradoxo. Os Estados Unidos, sob o argumento de arcar com gastos militares no continente europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial, anunciaram cortes significativos nos gastos com defesa na Europa.
Esta decisão tem consequências diretas e profundas nos orçamentos dos países europeus, que já enfrentam múltiplas crises simultâneas:
Crise energética decorrente da guerra Rússia-Ucrânia, elevando custos de produção e reduzindo a competitividade industrial
Perda de mercados asiáticos para a China, como evidenciado pelas dificuldades das montadoras alemãs em manter sua participação no mercado global
Necessidade urgente de aumentar gastos militares próprios para garantir segurança continental
E a mudança na Europa está a passos largos europeu. A crescente percepção de que os Estados Unidos, historicamente garantidores da segurança do continente, podem não vir em socorro da Europa em um conflito futuro, está forçando uma reavaliação completa das prioridades orçamentárias.
Esta nova realidade geopolítica preparou o terreno para um aumento acelerado dos gastos militares em todo o continente, redirecionando recursos que poderiam ser destinados à competitividade econômica ou ao fortalecimento do estado social.
A magnitude desta mudança ficou evidente quando, horas após o presidente americano Donald Trump suspender toda a ajuda militar dos Estados Unidos à Ucrânia, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, apresentou um plano ambicioso para mobilizar até 800 bilhões de euros (aproximadamente R$ 4,7 trilhões) para a defesa da Europa. Este montante extraordinário, equivalente a cerca de 5% do PIB da União Europeia, representa não apenas uma resposta imediata à crise ucraniana, mas uma reorientação estratégica de longo prazo das prioridades europeias frente ao abandono americano.
O plano europeu inclui financiamentos específicos e novas regras fiscais que permitirão aos países-membros aumentar significativamente seus orçamentos de defesa sem violar os limites de déficit estabelecidos pelos tratados da UE.
Esta flexibilização das regras fiscais, embora necessária para a segurança continental, cria pressões adicionais sobre economias já fragilizadas e potencialmente compromete recursos que poderiam ser direcionados para manter a competitividade industrial frente à China ou preservar o modelo social europeu, aprofundando o dilema entre segurança, competitividade e direitos sociais.
O paradoxo se estabelece claramente: para competir economicamente com a China e simultaneamente garantir sua própria segurança, os países ocidentais, especialmente os europeus, precisariam reduzir custos e aumentar eficiência. Mas a questão crucial é: de onde virão estes cortes?
As opções são limitadas:
Redução do estado social: Cortar direitos e garantias fundamentais, comprometendo o contrato social que sustenta as democracias
Protecionismo econômico: Como o recente "tarifaço" dos EUA, que pode proteger indústrias locais, mas aumentar preços para consumidores
Inovação tecnológica: Buscar vantagens competitivas através de avanços que compensem os custos mais elevados
Reestruturação do modelo produtivo: Desenvolver novos paradigmas econômicos que mantenham os direitos sociais com maior eficiência
Redução de outros gastos públicos: Incluindo infraestrutura e investimentos de longo prazo, comprometendo o desenvolvimento futuro
O avanço chinês, combinado com a retirada americana do guarda-chuva de segurança europeu, coloca em xeque não apenas a competitividade econômica ocidental, mas potencialmente o próprio modelo democrático.
Como observa Ferguson, as democracias têm resistido por serem "economicamente, tecnologicamente e militarmente dominantes". Se essa dominância for erodida pela ascensão chinesa e pela fragmentação da aliança ocidental, o modelo democrático pode enfrentar pressões crescentes.
A Europa, em particular, encontra-se em uma posição especialmente vulnerável: precisa simultaneamente:
Financiar sua própria defesa
Competir com a China economicamente
Resolver sua dependência energética
Manter seu estado social
Tudo isso com recursos orçamentários finitos e uma base industrial em declínio relativo.
Conclusão: A Convergência Sistêmica e o Futuro da Democracia
A China está gradualmente alterando o paradigma da democracia ocidental desde o início do século XXI, posicionando-se como uma réplica contemporânea do que foram os países europeus e os Estados Unidos nas décadas de 1970-80 – economias em rápido crescimento com forte presença estatal na coordenação industrial.
A diferença fundamental, contudo, reside no fato de que enquanto o Ocidente desenvolveu seu modelo industrial dentro de estruturas democráticas progressivamente mais inclusivas, a China alcançou resultados comparáveis – ou superiores – sob um sistema autoritário de partido único.
Este contraste levanta uma questão inquietante: estariam os países ocidentais destinados a se tornarem gradualmente uma cópia do modelo chinês, com democracia reduzida e dirigismo estatal concentrado, para manterem sua competitividade?
A evidência sugere que já está em curso uma convergência parcial dos sistemas. O Ocidente adota crescentemente políticas industriais dirigistas, flexibiliza regulações ambientais e trabalhistas, centraliza decisões estratégicas e limita o escopo da deliberação democrática em áreas consideradas de segurança nacional ou competitividade econômica.
Simultaneamente, o estado social – conquista fundamental das democracias ocidentais do pós-guerra – enfrenta pressões orçamentárias sem precedentes, com cortes progressivos em benefícios e serviços que antes eram considerados direitos inalienáveis. Esta transformação não ocorre através de rupturas dramáticas, mas por meio de ajustes incrementais que, cumulativamente, alteram a natureza do contrato social democrático.
Se este caminho de "chinificação" do Ocidente continuar, as sociedades democráticas precisarão se acostumar com menos – ou consideravelmente menos – democracia em áreas críticas. Decisões estratégicas sobre política industrial, investimentos de longo prazo e alocação de recursos serão progressivamente isoladas do escrutínio democrático e transferidas para tecnocratas e planejadores centrais, justificadas pela necessidade de competir com a China.
O espaço para dissenso político significativo em questões econômicas fundamentais poderá se contrair, com a competitividade global servindo como justificativa para limitar o alcance da deliberação democrática.
A questão central não é se este processo ocorrerá – pois já está em andamento – mas se as sociedades ocidentais conseguirão preservar o núcleo essencial de seus valores democráticos enquanto adotam elementos do modelo chinês que consideram necessários para sua sobrevivência econômica.
Referências
TRADING ECONOMICS. China GDP Growth Annual. Disponível em: https://pt.tradingeconomics.com/china/gdp-growth-annual. Acesso em: 9 abr. 2025.
BBC NEWS BRASIL. 'Democracias estão em perigo', diz historiador Niall Ferguson. BBC News Brasil, 27 mar. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/60922606. Acesso em: 9 abr. 2025.
R7. 1/3 dos carros vendidos no mundo é chinês; veja os números. R7, 8 maio 2024. Disponível em: https://noticias.r7.com/prisma/autos-carros/13-dos-carros-vendidos-no-mundo-e-chines-veja-os-numeros-08052024/. Acesso em: 9 abr. 2025.
MOTOR1 UOL. China produziu em 2024 o equivalente a 12 anos do mercado brasileiro. Motor1 UOL, 2024. Disponível em: https://motor1.uol.com.br/news/747450/china-producao-veiculos-2024-brasil/. Acesso em: 9 abr. 2025.
CNN BRASIL. Mudança dos EUA sobre proteção da Europa valoriza empresas de armas. CNN Brasil, 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/mudanca-dos-eua-sobre-protecao-da-europa-valoriza-empresas-de-arma/. Acesso em: 9 abr. 2025.
TERRA. União Europeia propõe plano de defesa de 800 bi de euros em resposta a corte dos EUA. Terra, 4 mar. 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/uniao-europeia-propoe-plano-de-defesa-de-800-bi-de-euros-em-resposta-a-corte-dos-eua,7ac0e731c08f38559be4802f741a835ak2h0ly47.html. Acesso em: 9 abr. 2025.
CNN BRASIL. Análise: Dias de glória para montadoras globais na China chegaram ao fim. CNN Brasil, 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/analise-dias-de-gloria-para-montadoras-globais-na-china-chegaram-ao-fim/. Acesso em: 9 abr. 2025.
CAPITAL RESET. Europa propõe afrouxar regras ESG. Capital Reset, 26 fev. 2025. Disponível em: https://capitalreset.uol.com.br/regulacao/europa-propoe-afrouxar-regras-esg/. Acesso em: 9 abr. 2025.
Nenhum comentário:
Postar um comentário