Fábio Medina Osório
Advogado e ex-ministro da Advocacia-Geral da União
A decisão do STF na AP nº 1.666/DF, relatada pelo min. Alexandre de Moraes, no contexto dos processos de 8 de janeiro, evidencia um dilema da democracia brasileira: como proteger as instituições contra ataques golpistas sem sacrificar as garantias constitucionais que sustentam o Estado de Direito?
No julgamento de Joel Muru Chagas Machado, cidadão comum presente no acampamento considerado pelo STF como centro de reunião dos golpistas, a Corte o condenou por associação criminosa e por incitar, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, e delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis e a sociedade, com pena fixada de um ano de reclusão, convertida em restritivas de direitos e multa, além da obrigação solidária de pagar R$ 5 milhões em danos morais. O precedente poderá orientar centenas de casos semelhantes e influenciar de forma duradoura a interpretação judicial sobre crimes multitudinários.
Além disso, já foram proferidas centenas de condenações análogas.
A competência do STF reserva-se a autoridades com foro listadas na Constituição. Joel Muru não detinha cargo público. A competência foi justificada por conexão com o Inq. 4.781/DF (Fake News), que envolve parlamentares, para evitar fragmentação de processos. O inquérito não foi distribuído por sorteio, como exige o princípio do juiz natural, mas instaurado de ofício em 2019 por Dias Toffoli, que designou Moraes relator, circunstância por si só que já despertou debates pela ausência de distribuição por sorteio, embora validado pelo plenário. Todavia, o ponto em debate neste momento, quanto à competência, diz respeito ao fato de que a conduta do acusado não foi descrita no acórdão com qualquer vínculo ou conexão real com autoridades detentoras de prerrogativa de foro e o próprio STF, em diversos precedentes, advertiu sobre essa necessidade. Nesse sentido, nem mesmo a competência do STF ficou justificada para esse caso.
Para condenar Joel Muru não se descreveram atos de violência, ameaça, premeditação de golpe de estado, discurso de ódio ou articulação e coautoria com terceiros. Não se descreveu conduta com porte de armas, tampouco comportamento ativo em redes sociais clamando por deposição de governo ou ataque a urnas, tampouco se descreveram depoimentos de testemunhas que apontassem sua participação ativa em atos golpistas. O que restou foi a confissão do réu condenado de que chegou no acampamento dia 08/01 e foi preso dia 09/01, desarmado e pacificamente. O Relator juntou fotos genéricas do acampamento, provas inúteis. Também fez menções a confissões de outros acusados em acordos extrajudiciais de não persecução penal, confissões que jamais poderiam ter sido usadas para esse fim, mas que foram utilizadas sem identificação das pessoas que confessaram e ainda sem qualquer referência ao teor dessas confissões, como se fossem supostos coautores da associação criminosa. Ou seja, provas igualmente que não individualizam crime algum contra o réu condenado.
Com todo o respeito que tenho e sempre tive pelo Min.Alexandre de Moraes, que é um grande magistrado e jurista, entendo que esse padrão decisório ofende princípios constitucionais da culpabilidade, responsabilidade penal subjetiva, dignidade da pessoa humana, devido processo legal, e interdição a arbitrariedade do poder público. A condenação baseou-se numa série de presunções abstratas.
Em essência, o suporte fático para os crimes pelos quais Joel Muru foi condenado circunscreveu-se a mera presença no acampamento de uma pessoa que admitiu tal circunstância e nada além disso.
Moraes usou a técnica interpretativa de se valer de precedentes dos anos 1990 sobre “crime multitudinário”, da relatoria do Min. Maurício Corrêa, que admitiam denúncia mais genérica em crimes de multidão, para não inviabilizar a persecução penal, mas condicionavam a condenação a provas individualizadas. No caso, esse conceito foi substancialmente alterado por Moraes e seus pares no plenário, vencidos os ministros André Mendonça e Kassio Marques, e o critério excepcional da denúncia acabou sendo usado para fundamentar a partir de agora a condenação, deturpando a essência dos precedentes anteriores.
Em seu voto vencido, o Min. Kassio Marques alertou que a própria denúncia do MPF reconhecia a natureza heterogênea do acampamento e seria impossível adotar presunção de que pessoas ali presentes, tão somente por tal circunstância, integrariam uma associação criminosa.
A própria prisão em massa, ocorrida em 09 de janeiro, revelou improviso: os acampados foram levados em ônibus e só então detidos, sem apuração prévia de responsabilidades e sem alerta de que seriam presos.
O relator mencionou que mais de 1.500 decisões seguiram essa linha, mais de 500 pessoas celebraram acordos de não persecução penal por conta disso. Trata-se de precedente que merece atenção e um aprofundamento sobre sua reprodução em massa no Brasil.