Artigo, especial, Alex Pipkin - A Obra e o Autor

Alex Pipkin, PhD


Morreu Luiz Fernando Veríssimo, aos 88 anos. A notícia se espalha com a previsível comoção. Trata-se de um cronista consagrado — humorista que captou as pequenas tragédias do cotidiano — e de um prosador que presenteou o Brasil com personagens inesquecíveis, como a célebre Velhinha de Taubaté. Sua obra continua a nos alcançar, refletindo nossas fraquezas, risos e contradições, lembrando que a obra, uma vez criada, vive por si mesma.



Ainda assim, fui crítico ferrenho de suas colunas em Zero Hora. Veríssimo, em várias delas, deixou-se levar pela devoção política, em detrimento dos dados e da realidade objetiva — ignorando a verdade sempre que esta chocava com sua religião política. Ao invés de ironia sutil, preferiu o discurso unívoco, confortável, que mascarava o incômodo da realidade.

Somos imanentemente humanos; o erro não nos desqualifica completamente. O erro é inerente à natureza humana, e é justamente isso que a cultura do cancelamento contemporânea ignora, destruindo reputações e homens inteiros, esquecendo que o valor da obra transcende as falhas do autor. Separar arte e artista é reconhecer que o autor desaparece por trás da obra; o sentido da obra não se reduz à intenção ou ao caráter do autor.

Heidegger é exemplo paradigmático. Autor de um legado filosófico monumental, mas que se enredou numa falha moral colossal — aderiu ao nazismo e só depois reconheceu que aquilo fora “a maior estupidez de sua vida”. Aliás, ele teve um longo relacionamento com a célebre pensadora judia Hannah Arendt. Eu, judeu, sei o peso moral dessa falha: envolve a adesão a um regime responsável pelo genocídio de mais de seis milhões de judeus — uma tragédia histórica incontestável, um verdadeiro genocídio contra o meu povo. Ainda assim, na filosofia que deixou, brilha uma luz que transcende o homem falível, lembrando que a obra, uma vez criada, vive por si mesma.

É necessária vigilância. É preciso criticar, sem hesitação, quando célebres autores — na literatura, filosofia ou jornalismo — abandonam o pensar e o fazer que engrandecem suas áreas, para abraçar causas espúrias e destrutivas. Reconhecer a obra, sim; jamais canonizar os erros. Muitos filósofos, escritores e artistas excepcionais são brilhantes em suas áreas de atuação, mas podem — e se perdem às vezes — ao opinar fora de sua esfera ou ao se submeter a visões ideológicas, comprometendo o valor de suas contribuições.

Em Veríssimo, essa separação também deve ser feita. Podemos rir com a Velhinha de Taubaté, admirar o olhar arguto e o aforismo certeiro. Mas também devemos continuar críticos, apontando quando o cronista se afasta da literatura e abraça o discurso ideológico como fé. Num país de trópicos verde, amarelo e vermelho, onde floresce a “ditadura da toga” em conluio com o lulopetismo, onde se prende inocentes, se impõe a Polícia do Pensamento e se instala a censura, vejo o sentimentalismo ideológico como neblina que embota nossa razão e obscurece a realidade. Como neblina, as palavras têm consequências; elas também podem servir como modelos negativos, influenciando leitores a negligenciar a realidade.

A obra é legado; o autor é humano e falível. Separar não é apagar, é preservar a obra e resistir ao engano. A obra é farol, espelho-máscara, tinta viva no quadro da criação. Veríssimo parte, mas sua escrita continua a conversar conosco. Cabe a nós, leitores atentos, conscientes e livres, guardar a integridade do legado, sem ignorar os limites do homem.

Artigo, especial, Dagoberto Godoy - A mega operação contra o PCC e a PEC da Segurança

 A mega operação contra o PCC e a PEC da Segurança

A disputa por um troféu político

Dagoberto Lima Godoy

A recente megaoperação contra o PCC, envolvendo sofisticados esquemas de lavagem de dinheiro em instituições financeiras, tornou-se não apenas um feito policial, mas também um episódio de repercussão política e institucional. A disputa por quem ficará com os louros — se o governo de São Paulo, responsável pela coordenação da Polícia Militar, ou o Governo Federal, com o Ministério da Justiça, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal — ganhou contornos estratégicos em meio ao debate sobre a chamada PEC da Segurança.

Essa Proposta, patrocinada de forma insistente pelo ministro Lewandowski, pretende ampliar a centralização do controle sobre as forças policiais, subtraindo parte da autonomia hoje exercida pelos estados. Para os governadores, trata-se de um movimento que ameaça um dos últimos bastiões de poder real das administrações estaduais: a autoridade sobre suas polícias militares. 

Para observadores mais atentos, a PEC não é apenas uma questão administrativa, mas parte de um processo de corrosão do pacto federativo e de construção de uma hegemonia federal que, na prática, seria mais um passo no processo que vai transformando  o país num modelo de democracia apenas formal, consolidando um projeto de poder de viés autoritário.

Nesse contexto, o mérito da operação contra o PCC passa a ter peso político decisivo. Se prevalecer a versão de que foi a polícia paulista quem desbaratou o esquema, isso fortalecerá os argumentos contrários à PEC, como demonstração que os estados possuem capacidade técnica e operacional para enfrentar organizações criminosas de envergadura nacional sem a tutela da União. Por outro lado, se a primazia for atribuída ao Governo Federal — seja pela ação direta da PF, pelo protagonismo do MPF ou ainda pela narrativa de uma cooperação equilibrada —, o feito se converterá em capital político para o governo Lula, consolidando a tese de que somente a centralização poderá garantir eficácia no combate ao crime organizado.

O que está em jogo, portanto, transcende o episódio criminal. Trata-se de uma batalha simbólica e política sobre o desenho institucional da segurança pública no Brasil. A operação contra o PCC tornou-se um laboratório de poder: se a narrativa pender para os estados, a PEC encontrará resistência robusta; se pender para Brasília, abrir-se-á caminho para uma redefinição do equilíbrio federativo, com consequências de longo alcance.

Mais do que uma questão de mérito operacional, assiste-se à disputa por um troféu político que pode alterar os rumos da relação entre União e estados e, em última instância, o próprio formato da democracia brasileira.