(RICARDO ARNT- Folha de S. Paulo, 25) 1. Na Faculdade de
Direito da USP, no Largo do São Francisco, suspeitava-se que Jânio Quadros
fosse um agitador esquerdista devido à sua hostilidade à Espanha franquista. O
professor de português do Colégio Dante Alighieri morava numa casa pobre, no
Cambuci, com poltronas estouradas e molas aparecendo pelo estofamento rasgado.
Em 1947, seus alunos se espalharam pela cidade, com mesinhas e cédulas
eleitorais, para ajudar a elegê-lo vereador pelo Partido Democrata Cristão,
numa campanha sem recursos, nem relações, nem apoios políticos. Conquistou a
primeira suplência.
2. Jânio, nascido em 25 de janeiro de 1917, conjugava a
formação clássica de colégio de padre com hábitos e intuição de pequena
burguesia numa mistura incomum de magreza, olhar lunático, deselegância e
dentes amarelos, cuja linguagem pernóstica e oratória arrebatada subia a
extremos de possessão e da cólera. Numa ascensão sem igual, em 13 anos da sua
carreira galgou os cargos de vereador (1947), deputado estadual (1950),
prefeito (1953), governador (1954), deputado federal (1958) e presidente da
República (1960), sempre condenando a política e defendendo a reforma política
e a justiça social. Mal chegava a terminar os mandatos, antes de eles expirarem
licenciava-se, candidatava-se a um cargo superior e era eleito de novo,
sucessivamente, até alcançar o posto eleitoral mais alto, a Presidência.
3. Era mais eficiente com menos espaço. Foi excelente
prefeito, bom governador e mau presidente. Era um reformista radical,
anticomunista, aliado a socialistas e trabalhistas, que defendia os excluídos
enquanto São Paulo crescia com levas de migrantes nordestinos. Intérprete do
imaginário popular, ampliou a cidadania para os pobres defendendo as liberdades
democráticas, a autonomia sindical e a meritocracia. Combatia o clientelismo e
a corrupção. Foi precursor da responsabilidade fiscal. Multiplicou por quatro a
quilometragem de estradas asfaltadas estaduais. Soube adiantar-se e construir
hidrelétricas para oferecer energia e atrair a indústria automobilística que
Juscelino Kubitschek queria levar para Minas Gerais. Foi o maquinista da
locomotiva de São Paulo que puxou a industrialização brasileira. Seu populismo
era "responsável", ao contrário de seu rival histórico, Adhemar de
Barros. Era do tipo que acordava de madrugada para inspecionar obras.
4. "Eis que se inicia o governo honrado, diligente,
inflexível, imparcial, áspero e impiedoso", anunciou-se ao assumir a
prefeitura da capital. Gênio do marketing, seu ego transbordava quando chegou a
Brasília em 1960. Durante o mandato de deputado federal fora ao Congresso só
uma vez –para tomar posse– esnobando a chance de estabelecer relações com os
políticos que desprezava - um erro que lhe custaria caro.
5. Jânio foi o pico culminante da cordilheira da vaidade
brasileira, aquela formação rochosa de gênios, salvadores da pátria, artistas
inquestionáveis e jornalistas prepotentes na qual se destacam os picos
talentosos Gilberto Freyre, Assis Chateaubriand, Carlos Lacerda, Darcy Ribeiro,
Glauber Rocha, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio da Silva. Jânio foi o
Pico da Neblina. Ao desmoronar, consagrou-se pelo avesso, tornando-se uma
caricatura de si mesmo. Para os brasileiros que não esquecem a história a cada
vinte anos, sua renúncia à Presidência, em 1961, precipitou uma quase guerra
civil descarrilhando a democracia tombada em 1964.
6. Jânio era sublime e sórdido. Tinha encenações geniais,
como tomar injeção na veia em comício para simular esgotamento, ou comer
sanduiche de banana para impressionar os pobres. Mas o corifeu da prosódia
moralista não prestava contas sobre a sua moralidade. Perseguia as casas de
massagem e os maiôs de misses, mas era um mulherengo agressivo. Voltou à
política, em 1974, apoiando os militares que o cassaram, condenando a anistia.
Reconquistou a prefeitura de São Paulo, em 1985, liderando uma coalização
conservadora. Sua vida é um desfile de ironias. Foi denunciado como corrupto
pela filha, que internou numa clínica psiquiátrica à força. Morreu em 1992 e a
conta do seu internamento no Hospital Albert Einstein foi paga pela construtora
Andrade Gutierrez. Deixou 66 imóveis para a família.
7. Nenhum político brasileiro foi tão injuriado,
caluniado e difamado. Não é fácil entender uma figura tão complexa. O que diria
a psicanálise de uma compulsão pela austeridade cultivada à sombra de um pai
infame, o deputado estadual Gabriel Quadros, crítico violento do filho e médico
de prostitutas especialista em abortos no Bom Retiro? Em 1957 o pai de Jânio
foi morto a tiros, em legítima defesa, por um feirante cuja mulher era sua
empregada. Gabriel invadira sua casa, acompanhado por capangas, para sequestrar
os filhos da mulher, que alegava serem seus filhos naturais. Houve luta e o pai
do governador se deu mal.
8. Quem se escandaliza com a política brasileira deveria
conhecer o passado.
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