Segredos e mentira
Cada pessoa de bem sabe que isso não está certo e que o
criminoso que usa a boa-fé de jornalistas para prejudicar a nação precisa ser
punido. Resta ver como
Ana Maria Machado, O Globo
Hoje, com as redes sociais e informações interligadas, já
saímos do velho clichê, de terra de café e banana, ou de samba, futebol e
mulher de biquíni. Mas o mundo ainda tende a não prestar muita atenção em nós.
No entanto, houve uma revalorização da imagem do Brasil, nos governos Fernando
Henrique e Lula, mostrando um país mais sério e respeitável.
Verdade que, nestes últimos anos, parte dessa nova
avaliação foi contaminada por uma campanha de descrédito muito bem organizada,
que colou nos meios jornalísticos e intelectuais no exterior, às vezes lentos
em perceber o que a Lava-Jato vinha revelando.
Mas seriam necessárias altas doses de distorção para
ocultar que algo nos distingue da típica Banana Republic. Qualquer analista
isento teve de reconhecer, pelo menos, que há no país sinais que atestam uma
democracia viva e nos distinguem dos regimes ditatoriais controlados por
caudilhos. Entre eles, o respeito à Constituição, a independência dos poderes,
uma Justiça atuante, e imprensa livre.
O observador — ingênuo ou não — que não tiver se deixado
contaminar pela desmoralização orquestrada pode ver como Justiça e mídia têm
funcionado, expondo crimes à luz do sol, mesmo se cometidos por poderosos. E
que essa ação conjunta tem agido no sentido de garantir a democracia.
Nos últimos dias, porém, duas sombras pairaram como
ameaças sobre esses fundamentos. A primeira foi o julgamento do TSE absolvendo
a chapa Dilma-Temer de abuso do poder econômico e político, desconsiderando um
excesso de provas. A outra está na publicação feita pela revista “Veja”,
denunciando que o Executivo, por meio da Abin, mandou espionar o Judiciário,
tendo como alvo preferencial o ministro do STF Edson Facchin.
Diante dessa acusação, as reações foram imediatas e
claras. Governante usar seu poder para atrapalhar a Justiça é inadmissível.
Com toda razão, democratas manifestaram preocupação com
essa possibilidade. Parlamentares se movimentaram para criar uma CPI da Abin.
Juristas, professores, historiadores, jornalistas multiplicaram seus protestos
e temores quanto à eventualidade de tal desvirtuamento de funções, totalmente
indefensável, ilegal e inconstitucional em sua tentativa de constrangimento.
Exemplo claro de uso criminoso do poder e da máquina do Estado em proveito
próprio para intimidar o Judiciário. Mais que isso, uma ameaça de choque
institucional perigosíssimo. A presidente do Supremo, mesmo após um primeiro
desmentido de Temer, reagiu prontamente em nota incisiva e firme.
Todos estão certos. A denúncia feita por grande revista
semanal, em matéria assinada por três jornalistas, seguramente só viria à luz
após ser examinada com rigor e aprovada por um editor responsável. Vai muito
além de um mero boato leviano como tantos que circulam pelas redes sociais. É
gravíssima, se confirmada, e abala a República. Exige apuração rigorosa e
punição de culpados.
E se não for confirmada? Se não passar de algo plantado
de propósito por alguma fonte não identificada, aproveitando a boa-fé de
jornalistas ingênuos? Ou a eventual distração de algum chefe incapaz de
detectar que estava sendo usado com malícia. Nesse caso, é igual mente grave. Não
dá para relevar. Também exige apuração rigorosa e punição dos culpados. E nos
alerta para uma vulnerabilidade de que a democracia precisa se proteger.
Como alguém planta algo desse teor e tem a proteção do
sigilo para esse crime?
O mecanismo se repete desde o governo FH. Não se sabe
vindo de onde, fontes anônimas informavam acusações graves. A imprensa
publicava protegendo as fontes com o sigilo constitucional. A garantia do
anonimato. A partir daí, algum delegado ou procurador (sobretudo dois contumazes)
saía em campo, e o boato virava um fato: a investigação.
Um deles, de ar monacal, encontrava um culpado por semana
mas caiu de produtividade: não vê mais nenhum desde que Lula tomou posse. Há
anos emenda licenças remuneradas.
Um notório delegado de então hoje vive asilado na Suíça e
está na lista da Interpol. Revelou-se que um dos plantadores de mentiras
estivera até envolvido na bomba do Riocentro.
Negociadores de falsos dossiês eventualmente descobertos
jamais foram punidos. No máximo, foram chamados de meninos aloprados.
Algumas vítimas, como o ex-ministro Eduardo Jorge,
ganharam na Justiça os processos que moveram para provar sua inocência. Mas
continuou à solta o calhorda que plantou a mentira, travestida ou não de
vazamento, e se fez passar por fonte confiável. Protegido pelo sigilo garantido
pela Constituição. Livre para voltar a atacar.
Não se advoga o simples fim dessa proteção. Mas cada
pessoa de bem sabe que isso não está certo e que o criminoso que usa a boa-fé
de jornalistas para prejudicar a nação precisa ser punido. Resta ver como.
Daí que agora, se não for confirmada a notícia de que a
Abin mandou escutar Facchin e de que o Executivo foi policialesco com o
Judiciário, o fato será no mínimo tão grave quanto se a denúncia for
confirmada. Quem apura? Quem protege? Até que ponto?
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