Estupra mas não mente
Janot, o homem bom, não teve flechas para negociatas
obscenas como a de Pasadena, repleta de digitais de Dilma
Guilherme Fiuza, O Globo
Apolítica brasileira não produziu uma cena tão sublime,
nas últimas décadas, quanto o abraço de Lula e Renan Calheiros num comício pela
democracia. Sublime, no caso, menos pela transcendência que pela
invisibilidade: esse Brasil que acordou para a ética e grita contra a tirania
vampiresca do PMDB velho, branco e podre devia estar de costas para o palanque.
Ou então cochilou de novo.
Essa lenda do país sequestrado pelos capangas do Eduardo
Cunha dá sono mesmo.
As obras completas de Lula não sensibilizam esse novo
Brasil ético, que perde de vista o maestro da pilhagem ao espernear contra os
governantes corruptos — em perfeita sintonia com Joesley Batista, o caubói
biônico que denunciou os inimigos do PT (gratidão é tudo).
Essa comovente artilharia cívica, por sua vez, acompanha
em proverbial coincidência a direção das flechas de Rodrigo Janot — o
justiceiro que deu fuga segura a Joesley e vida mansa a Renan (o investigado
mais feliz da República, porque flechada de amor não dói).
Renan que vem a ser o mesmíssimo personagem do parágrafo
acima, portanto a raposa do PMDB (tapa o nariz e vai, companheiro) que acaba de
tirar do armário sua imorredoura lealdade a Lula. Não se perca na cadeia de
amizades.
Corta para mais uma cena sublime que o novo Brasil ético
não viu: ao lado da procuradora-geral da Venezuela, escorraçada pela ditadura
amiga do Lula, Janot declara que Maduro estuprou as instituições democráticas.
Uma frase sonora, especialmente quando dita por um personagem
que se encontra há cem dias tentando derrubar um presidente no grito. A
diferença para a sangria venezuelana poderia ser demarcada por Maluf: estupra,
mas não mata.
Como o Brasil faz questão de fingir que não sabe ou não
viu, pau que dá em Chico, dá em Francisco, mas não dá em Joesley, nem em Dilma.
Janot, o homem bom, não teve flechas para negociatas obscenas como a da
refinaria de Pasadena, repleta de digitais da ex-presidenta mulher — dentre
diversos crimes cometidos sob sua influência como ministra e como chefe de
governo, com os comparsas que ela, seu partido e seu tutor escolheram. Janot, o
homem justo, ídolo dos que deploram a corrupção, aliviou essa quadrilha o
quanto pôde, em suas triangulações mágicas com os supremos companheiros e o fiel
despachante José Eduardo Cardozo.
No que o impeachment tirou o poder das mãos da quadrilha
do bem, o amortecedor-geral virou franco-atirador. Combinou uma virada de mesa
com o açougueiro enriquecido pelo PT, numa denúncia imprestável que, se o
Brasil tiver algum juízo, ainda será caso de polícia.
Deu tudo errado — e agora esse diletante do tiro ao alvo
está posando de defensor ultrajado da democracia venezuelana, estuprada pelos
amigos dos seus amigos. Mas isso tudo é segredo e deve ser falado em voz baixa,
para não atrapalhar os sonhos dourados do novo Brasil ético que venera Janot.
Se Renan Calheiros ainda está circulando leve e fagueiro
por aí, vai ver ele é do PMDB do bem. O mal está nos golpistas que tiraram a
Petrobras dos afilhados de José Dirceu e sanearam em um ano a companhia
devastada pelo PT.
Essa gente perversa agora quer sanear a Eletrobras,
possivelmente privatizando-a, e Dilma Rousseff (que está solta) já gritou que
isso é um crime.
De fato, depois de tudo que a Lava-Jato revelou, se a elite
branca e do lar sair blindando estatais em série vai ficar difícil, para os
guerreiros do povo, continuar roubando honestamente.
As reformas dessa gente ruim que acaba de tirar o país da
recessão estão turbinando o mercado, com a Bovespa próxima da pontuação recorde
na década.
Isso é muito preocupante: ameaça desempregar um enorme
contingente de pais de família que vivem de caçar voto fácil contando história
triste — e necessitam que o país se arrebente agora, para que possam voltar a
vender a bondade transgênica dos últimos 13 anos. Flechas para que te quero!
Neste momento crucial da conjuntura, em que o grito por
depuração política traz nova chance de ouro para o heroísmo tarja preta, talvez
ninguém tenha se destacado tanto no ramo da alta prostituição intelectual
quanto os tucanos.
Assumiram a obrigação de apoiar os agentes sérios que
entraram no governo para desfazer a lambança, mas resolveram manter uma
expressão de virgem ultrajada da porta para fora — e assim conseguirão perder
dobrado: o respeito e a clientela.
Vão acabar abraçados a Lula e Renan, rezando por flecha
de bambu e mesada de açougueiro, nessa cadeia da bondade que terá a bondade de
terminar na cadeia.
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