Artigo do "Observatório para um Brasil Soberano".
A repetição, em política, quase nunca é sinal de firmeza. Quando o mes mo personagem volta à cena com o mesmo discurso, em tempo tão cur to, é porque o sistema perdeu o controle sobre os próprios códigos. O artigo de José Sarney publicado nesta semana — o segundo em poucos dias — não é um gesto de reflexão serena. É um alerta interno. Um pedi do de trégua. Um apelo para que os fiadores do regime não deixem a engrenagem travar de vez.
Sarney não é comentarista: é oráculo do regime. Não escreve para o pú blico geral, mas para os iniciados. Seu papel é oferecer uma aparência de sabedoria ancestral a um sistema que, na prática, se mostra cada vez mais errático e frágil. Ao escrever sobre “paz”, Sarney não propõe recon ciliação — tenta preservar o pacto. A paz evocada ali não é entre opostos ideológicos. É entre os sócios do próprio arranjo institucional que come ça a se desfazer pelas beiradas.
A proximidade entre os dois artigos revela mais do que a mensagem em si. Mostra que o primeiro conteúdo não deu conta do recado. Foi preciso repetir. Reforçar. Insistir. E isso não acontece por acaso. A repetição é o sintoma de que a autoridade do discurso já não é suficiente. É quando o sistema precisa convencer a si mesmo de que ainda há coesão. Quando um regime precisa de reforço simbólico constante, é porque está per dendo a capacidade de operar pelo silêncio.
Esse tipo de manifestação não fala com o povo; não busca formar opi nião pública. É redigido no idioma do sistema, com destinatário espe cífico: ministros, parlamentares, banqueiros, operadores jurídicos e po líticos que sustentam, com mais ou menos entusiasmo, a normalidade aparente. Quando essa elite precisa ser lembrada do próprio pacto, é porque ela mesma já cogita abandoná-lo.
E o tom dos textos entrega esse receio. Não há grandiloquência, nem gesto de poder. Há melancolia e apelo. Há a tentativa de restaurar uma liturgia que já não mobiliza nem mesmo os devotos. Há o esforço de dar ao momento um verniz de continuidade, quando o que se vive é exata mente o oposto: um colapso sutil da autoridade institucional.
O sistema pede trégua quando sente que está ficando só; tão logo per cebe que o discurso de estabilidade perdeu credibilidade até entre os aliados; quando teme que a rachadura vire ruptura. Daí o tom brando, o uso de símbolos. Por isso a escolha de Sarney — a última figura capaz de falar como se ainda houvesse alguma nobreza no colapso.
Mas não há. Há apenas o ritual de repetição. E a tentativa, cada vez mais visível, de colar os cacos antes que a narrativa vire escombro público.
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