Dagoberto Lima Godoy
Às vésperas do julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal, sob a acusação de envolvimento em uma tentativa de golpe de Estado, o Brasil se encontra diante de uma encruzilhada crucial. O tema ultrapassa a figura do ex-presidente: envolve a própria forma como o Estado de Direito reage a ameaças políticas e como o Judiciário se posiciona diante da pressão social e institucional. A questão é atual e candente: medidas excepcionais podem ser admitidas em nome da democracia? E quando deixam de ser defesa e passam a ser pretexto autoritário?
O ordenamento jurídico brasileiro é claro. A Constituição assegura o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, e o Código Penal tipifica crimes contra o Estado democrático exigindo atos inequívocos de execução. Não basta intenção política; é necessário provar materialidade e autoria. É nesse ponto que surge a controvérsia. O Ministério Público sustenta que Bolsonaro teria tramado medidas para impedir a posse de Lula em 2023, com minutas de intervenção e pressões sobre militares, culminando nos atos de 8 de janeiro. Tais documentos, porém, não foram implementados, a ligação direta entre o ex-presidente e os atos violentos permanece contestada, e muitos réus limitavam-se a participar de manifestações, não de ataques armados. Assim, a própria existência material do golpe ainda é matéria em disputa.
É nesse vazio de prova cabal que se instala o risco maior: o da chamada “legitimidade de exceção”. A Constituição prevê mecanismos extraordinários, como o Estado de Defesa ou o Estado de Sítio, que permitem restrições temporárias de direitos em crises, mas sob ritos claros e com controle do Congresso. Diferente disso, medidas adotadas sem base formal — como a concentração de centenas de processos no STF, prisões preventivas prolongadas, restrições à comunicação social e atos que resultam em censura direta ao direito de opinião e à liberdade de expressão — configuram exceções criadas ad hoc. Não estão no texto constitucional: são justificadas apenas pelo frágil argumento de necessidade.
O exemplo mais claro dessa contradição foi dado pela ministra Cármen Lúcia, que reconheceu o caráter desproporcional de algumas medidas do TSE contra meios de comunicação, admitindo que não se justificavam plenamente à luz da Constituição. Ainda assim, votou por mantê-las, afirmando que o momento exigia medidas excepcionais. É a própria essência da exceção: admitir a violação, mas legitimá-la em nome da defesa institucional.
O dilema é evidente: se há prova incontestável de tentativa de golpe, o Estado deve reagir com os instrumentos extraordinários previstos na Constituição. Se não há essa prova, e ainda assim se invocam medidas fora do ordenamento, o risco é a exceção transformar-se em regra, abrindo espaço para arbitrariedades futuras. Nesse ponto, defender a democracia com meios que corroem seus próprios fundamentos é um paradoxo perigoso.
Enquanto Bolsonaro e outros réus enfrentam um implacável STF, a sociedade precisa refletir: o que está em julgamento não é apenas a conduta de indivíduos, mas a forma como tratamos as fronteiras do direito em tempos de crise. Democracia se preserva com lei — e não com exceções improvisadas. O remédio da exceção, quando aplicado sem base sólida, pode se tornar mais venenoso do que a doença que pretende curar.
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