Mauro Magatti : Sociedade
digital e mundo do trabalho
1. Desde quando, no início dos
anos noventa, começou a Internet, só se lançaram as premissas para a criação da
sociedade digital: construiu-se a rede, venderam-se computadores pessoais,
tablets, celulares, desenvolveram milhares de aplicativos. Agora estamos
prontos para um verdadeiro salto de qualidade.
Nos próximos anos, com a Internet
of Things, a inteligência artificial, o deep learning, os robôs, a indústria
4.0, muitas coisas estão fadadas a mudar radicalmente.
2. Tal processo entrelaça-se com
a crise do sistema capitalista global iniciada em 2008. O que isto significa?
Significa que um equilíbrio baseado politicamente na hegemonia dos Estados
Unidos e na troca social entre finança e consumo (que já provocou a perda da
centralidade do trabalho) não se sustenta mais.
3. Isto significa que o problema
não é simplesmente religar o motor da economia. Porque, ainda que este motor
volte a funcionar — como agora —, não ficam resolvidos os problemas sociais e
do trabalho.
E por três razões:
– o efeito do crescimento do PIB
sobre o emprego é hoje mais moderado do que há alguns anos O caso americano
ensina: embora a economia mostre há anos um ritmo positivo, a taxa de emprego
dos Estados Unidos permanece nos mínimos históricos (e mesmo comparável à da
grande depressão). As baixas taxas de desemprego não devem enganar: muitos
americanos simplesmente deixaram de buscar trabalho. O problema é que o aumento
do PIB está relacionado principalmente aos setores mais inovadores e eficientes
(frequentemente ligados à demanda externa). Assim crescem lucros, investimentos
e produtividade; e só em medida mais modesta o emprego.
O crescimento do PIB tende a
concentrar-se mais do que no passado. Alguns setores e profissões veem aumentar
os próprios ganhos; no entanto, são muito mais aqueles em que os salários
tendem à estagnação, o trabalho é precário e subpago. A parte de valor
adicionado distribuída ao trabalho continua a decair. Eis por que o homem comum
permanece convencido de que as coisas continuam mal. Se não fosse assim, não se
explicaria por que Trump pôde vencer as eleições americanas, apesar dos bons
dados macroeconômicos obtidos pela administração Obama.
– o crescimento concentra-se em
algumas áreas de modo ainda mais explosivo do que no passado. A retomada,
assim, ameaça desagregar comunidades políticas inteiras.
4. Com a digitalização,
afirma-se a indústria 4.0, caracterizada pelo uso intensivo e capilar de robôs
autônomos, realidade aumentada, cloud, big data e analítica, internet das
coisas industriais, integração dos sistemas horizontais e verticais, simulação e
produção aditiva, produções sob medida. Novos níveis de integração ditigal
permitirão às máquinas relacionarem-se entre si e aprenderem continuamente,
desenvolvendo formas de “automação inteligente”. A otimização da produção será
o objetivo fundamental do novo modelo de produção, impulsionando-o para níveis
ainda mais elevados de eficiência.
5. Entre as grandes companhias
emergentes, a Amazon permite ver a direção de tal mudança. Colosso da logística
que movimenta mercadorias provenientes de todo o mundo, organizando-as numa
cadeia distributiva capilar que chega até aos lugares mais remotos e
caracteriza-se por sua velocidade e confiabilidade, a Amazon — precisamente
graças às tecnologias digitais, robôs, drones — alcança níveis de eficiência
extraordinários. Recentemente, a Amazon abriu o primeiro supermercado “sem
caixas e sem atendentes”. A Amazon é a campeã de uma abordagem dura do
trabalho, submetido ao sistema técnico.
6. Neste caminho uma parte ampla
dos trabalhos será substituída por máquinas e dispositivos. Os pessimistas
sustentam que se chegará a uma jobless society, isto é, a uma sociedade sem
trabalho.
7. A esta tese os otimistas
respondem afirmando que o problema das novas tecnologias sempre foi resolvido
com a criação de novos postos de trabalho. Mas tal argumento não é decisivo.
Não só porque talvez o que aconteceu em outras épocas históricas não se
verifique de novo, mas sobretudo porque, admitindo-se só para fins de
raciocínio que tal seja o resultado final, não sabemos como será a transição.
Que é o que mais conta.
8. No entanto, aqui gostaria de
argumentar que é equivocado — e, portanto, perigoso — enfrentar a fase que
estamos a atravessar permanecendo prisioneiros desta discussão. E isto à medida
que a sociedade digital atinge dois pontos que estiveram na base da sociedade
nascida com a revolução industrial.
9. O primeiro ponto é o
desaparecimento da fronteira entre trabalho e vida tal como a concebemos nos
últimos dois séculos, isto é, a partir da revolução industrial e do surgimento
da fábrica moderna.
De fato, o surgimento da
sociedade digital possibilita difundir de modo capilar o controle
historicamente exercido no interior dos muros da fábrica para o que se
desenrola em toda a sociedade e cria as condições para tornar “ubíquo” — isto é,
sem tempo e sem lugar — o trabalho. Em outras palavras, um trabalho destituído
de lugar, porque organizado em “ambientes digitais” e, como tal, ainda mais
abstraído da realidade. E, ao mesmo tempo, destituído de tempo; daí que
desapareça a noção de horário de trabalho e, com ele, a segmentação entre
“tempo de trabalho” e “tempo livre”, “tempo público” e “tempo privado”,
períodos dedicados ao estudo, ao trabalho ou à aposentadoria. Deste ponto de
vista, talvez estejamos caminhando, antes do que para a jobless society, para a
total-job society, isto é, uma sociedade organizada em torno de um novo tipo de
trabalho (e de vida) sem lugar e sem tempo, na qual a relação entre trabalho e
remuneração deverá ser completamente renegociada.
10. O segundo ponto refere-se ao
aprofundamento de um processo já iniciado há tempos, ou seja, a inclusão
sistemática do consumo no regime capitalista. Com o advento dos big data, toda
e qualquer ação nossa será monitorada. E de algum modo nossa atividade
extralaboral será cada vez mais inserida na produção.
Mais uma vez, a Amazon faz-nos
compreender do que se trata: acumulando um conhecimento aprofundado dos gostos
e das inclinações dos próprios clientes, a Amazon é capaz de estabelecer uma
relação com cada cliente, a quem oferece sugestões personalizadas. Como se vê,
o que se redefine é a divisão “industrial” entre produção e consumo.
11. Por estes motivos, mais do
que a jobless society, parece me que o desafio diante de nós seja o risco de
ver nascer um neotaylorismo societal.
Esta possibilidade primeira
prevê que a capilar penetração da rede e a digitalização de todo instrumento e
ambiente de nossa vida pessoal e coletiva seja a condição para poder conceber
toda a vida social como uma grande fábrica, em que cada ato (de produção, de
consumo, de reprodução) poderá ser monitorado e tornado eficiente. Com a
digitalização, a lógica taylorista poderá ser aplicada não mais só às fábricas,
mas também às cidades, aos hospitais, às estações, às escolas, às
universidades. Graças aos eficazes instrumentos de controle remoto à
disposição, não haverá lugar (casa, rua, etc.) nem atividade (trabalho, mas
também saúde, tempo livre, formação, etc.) que em princípio possa ficar fora da
visão telescópica. Isto significa que um novo Panóptico infinitamente mais
poderoso do que aquele imaginado por J. Bentham está hoje ao alcance da mão.
Não uma jobless society, mas uma total job society.
Além de inúmeros problemas
(perda de privacy, ulterior padronização das atividades humanas, aumento de
controle, perda de proteção), o neotaylorismo societal, indiscutivelmente, tem
a grande vantagem de poder inserir na produção parcelas cada vez mais amplas da
vida social e humana, tornando assim possíveis novas margens de crescimento
quantativo.
12. Devendo administrar níveis
cada vez mais altos de eficiência em presença de desigualdades crescentes, o
neotaylorismo se baseará na troca de eficiência por segurança.
13. Será este o único resultado
possível? Acredito que não.
14. Bernard Stiegler sustenta
que “uma ‘economia da contribuição’ tem na rede a infraestrutura técnica
necessária”.
Graças à digitalização, hoje
existe a possibilidade de criar ambientes laborativos dinâmicos e plurais, em
que o produto é um objeto em torno dos quais se criam comunidades de interesse
mútuo, no quadro de um novo tipo de horizonte relacional baseado no
compartilhamento de responsabilidades e no cuidado recíproco. Segundo esta
concepção, o que se redefine é a ideia mesma de trabalho: antes do que como
consumidor, cada qual é aqui visto como um contribuidor, isto é um sujeito
ativo e capaz que participa da produção de valor contextual.
Nesta perspectiva, o valor
contextual determina-se a partir de uma matriz de prioridade estabelecida
politicamente, a qual, com a definição das opções de desenvolvimento
compartilhadas, fornece o sistema das conveniências sobre cuja base as decisões
individuais podem ser tomadas. Isto promove o florescimento dos territórios
através de investimentos públicos de tipo infraestrutural, educativo,
empresarial e associativo.
15. Para compreender o que falo,
uso uma categoria de Carl Schmitt, o qual associava a técnica ao mar. Neste
sentido, a política hoje pode ter um papel se operar para construir “terra
humana” no mar da técnica. Um dos significados etimológicos do termo nomos
(lei) — além de “conquista” e “repartição” — é “cultivação”. No mar da técnica,
a terra “emerge” no ponto em que se torna de novo possível a vida humana
associada, colocando a técnica a serviço de seus habitantes. Em relação com o
mundo. Mas, para dar frutos, a terra deve ser trabalhada e cuidada. Este é o
“nomos da terra” na era do mar técnico: uma terra humana só existe na medida em
que se criam as condições que a definem — fazendo-a emergir — em relação ao que
está a seu redor.
16. Isto implica uma nova troca
entre política, economia e sociedade — que chamo sustentável-contributiva —
capaz de assumir a forma de uma aliança baseada numa nova forma de relação
win-win, para a produção de valor contextual.
17. Aos sujeitos econômicos que
reconhecem a sustentabilidade (ambiental e social) como condição para uma nova
era de crescimento, oferecem-se condições adequadas para a obtenção de lucros
mediante a criação de contextos simultaneamente dinâmicos, integrados e bem
organizados, em que se criam as condições mais propícias para poder dispor dos
melhores recursos (humanos, tecnológicos, financeiros).
Do ponto de vista econômico, a
troca sustentável-contributiva age:
i) sustentando a demanda interna
como efeito de uma política de integração e de equidade econômica;
ii) desenvolvendo novos espaços
de mercado gerados mediante investimentos públicos, novas parcerias
público-privado, processos difusos de inovação;
iii) melhorando a
competitividade sistêmica como efeito da produção de valor contextual.
18. Mas a sustentabilidade, por
si só, não será bastante se não se aliar a todo o variado conjunto dos
contribuidores.
19. Neste sentido, a revolução
digital pode constituir a infraestrutura tecnológica para um novo paradigma
socioeconômico com base numa troca “sustentável-contributiva” — que se segue à
fordista-welfarista e à financeiro-consumista — fundada numa economia do “valor
contextual”. A ideia de fundo é que, terminada a bonança financeira, deve-se
voltar, de modo novo, a uma velha ideia: quem produzir valores contextuais é
que será capaz de sustentar também os consumos, e não mais o inverso. Como
pensamos nestas décadas.
20. Embora o tenhamos esquecido,
a economia é sempre “política”. E hoje mais do que nunca isto é verdade. Depois
de 20 anos de desconexão — efeito da globalização liberal —, o que hoje está em
discussão é o liame social, como, de resto, confusamente o populismo dá a
entender. Precisamos, portanto, de uma nova inteligência social, uma nova
imaginação sociológica sobre nosso modo de estar juntos, para evitar que uma
oportunidade — o fato de que o homem seja substituído pelas máquinas no
desempenho de funções repetitivas e maçantes — se transforme em drama social.
* Mauro Bagatti é professor da
Universidade Católica de Milão. Entre outros, escreveu Cambio di paradigma –
uscire dalla crisi pensando il futuro (Feltrinelli, 2017). Texto apresentado no
seminário “Desafios de um mundo em intensa transformação” (set. 2017),
organizado em São Paulo pela Fundação Astrojildo Pereira e pelo Instituto Teotônio
Vilela.
O artigo esquece completamente o efeito demográfico do homem. Menos gente no planeta com o passar do tempo por opção individual
ResponderExcluirBem interessante! Obrigado por partilhar. :)
ResponderExcluirSim. efeito demográfico foi uma preocupação de Napoleão Bonaparte, mas não esqueçamos que só existe diminuição demográfica onde a pobreza já foi erradicada.... não vejo solução para este problema nos próximos 50 anos, pois riqueza e educação, são irmas siamesas.....
ResponderExcluirSim. efeito demográfico foi uma preocupação de Napoleão Bonaparte, mas não esqueçamos que só existe diminuição demográfica onde a pobreza já foi erradicada.... não vejo solução para este problema nos próximos 50 anos, pois riqueza e educação, são irmas siamesas.....
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