Calma, 2017 não tem parentesco com 1964
Tornou-se recorrente nas redes sociais e mesmo em parte
da mídia tradicional afirmar que a convocação do Exército pelo presidente
Michel Temer trazia ecos de 1964 e, por extensão, da ditadura que então se
instalou.
Bobagem. Em 1964, as Forças Armadas saíram dos quartéis
para tomar o poder. Agora, para proteger o poder ou, mais precisamente, os
edifícios que são símbolos do poder. É, pois, completamente diferente.
Não que seja digna de aplausos a iniciativa do governo
Temer. Ao contrário. Mas daí à evocação de 1964 é incidir no típico raciocínio
"fast food" que assola a pátria: fácil e rápido de fazer, mas de
gosto no mínimo discutível.
Não há, a rigor, muitos pontos de contato entre 2017 e
1964. Para começar, havia, então, uma disputa pelo poder entre projetos
realmente antagônicos. Havia, há 50 e tantos anos, um Partido Comunista que era
comunista de verdade. E havia, ainda por cima, a tal de Guerra Fria, em que
países como o Brasil serviam de peões para uma batalha ideológica.
Vencida, pelo capitalismo, a guerra ideológica, a disputa
limita-se apenas a como administrá-lo, não mais à substitui-lo.
Hoje, a disputa pelo poder não envolve projetos realmente
antagônicos. Luiz Inácio Lula da Silva enterrou o projeto que seria antagônico
ao que Michel Temer representa ao dizer que tudo o que o PT pregava enquanto
esteve na oposição não passava de "bravata".
Tanto não são antagônicos que Henrique de Campos
Meirelles foi o ministro da Fazenda "de facto" de Lula, como
presidente do Banco Central, e é o ministro da Fazenda "de facto" e
de direito de Michel Temer. E, ainda por cima, um presidenciável ou, no mínimo,
ministro da Fazenda também do esquema que assumirá o governo se e quando Temer
cair.
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Vamos deixar de fantasias. A ideia de que "todo o
poder emana do povo" (parágrafo único do artigo 1º da Constituição) é
hoje, ao menos no Brasil, uma balela. Todo o poder emana dos agentes de
mercado. Ponto.
Tanto que na discussão em torno da sucessão de Temer, não
se debate uma agenda que possa ser defendida e implementada pelo sucessor.
Procura-se apenas um sucessor que possa tocar a agenda que já está posta pelo
esquema de poder agora encurralado.
"The Economist", na edição que está nas bancas,
diz, claramente: "Fique Temer ou saia, o melhor que o Brasil pode esperar
agora é um presidente fraco que possa terminar o que ele começou, no restante
do presente mandato, que vai até o fim do próximo ano".
O que "ele começou" é uma agenda imposta pelo
mercado. Pode ser certa, pode ser errada, mas certamente não é uma escolha
democrática.
Trata da necessária estabilização da economia, mas nem
tangencia os imensos problemas da pátria, que vão muito além. Nada há nela que,
por exemplo, permita enfrentar a obscena pobreza (73 milhões de brasileiros
sobrevivem com no máximo meio salário mínimo, conforme dados do Ministério de
Desenvolvimento Social, ainda no tempo de Dilma, ou seja, após 13 anos de poder
do PT, supostamente pró-pobres, mas de fato pró-mercado).
Nada há também sobre a igualmente obscena desigualdade,
retratada, por exemplo, no fato de que são necessários 14 anos para que os
beneficiários do Bolsa Família, os pobres entre os pobres, recebam o que os
favorecidos pela Bolsa Juros recebem em apenas um ano –e são os ricos entre os
ricos.
Nem vale a pena falar de educação, saúde, serviços
públicos, infraestrutura, problemas crônicos.
O que há de positivo, na comparação 2017/1964, é o fato
de que, então, a oposição ao governo de turno cobrava que os militares
rasgassem a Constituição –o que de fato fizeram. Agora, ao contrário, qualquer
proposta de remoção do presidente obedece aos mandamentos constitucionais.
Impeachment está na Constituição, eleição indireta está na Constituição e até
emenda para estabelecer a eleição direta, em vez da indireta, faz parte das
regras constitucionais do jogo.
O funcionamento das instituições estabelece uma diferença
definitiva entre 2017 e 1964: o golpe de 64 resultou em presos políticos –o que
é abominável. Já as instituições de 2017 estão gerando políticos presos (e
empresários também)– uma saudável novidade.
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