A imprensa nunca produz fake news

Embora esteja em curso uma grotesca disputa eleitoral em torno de pautas recheadas de fake news, levando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a corretamente banir conteúdos incontestavelmente falsos, nada justifica que veículos de imprensa venham sendo punidos por publicar notícias. Para piorar, uma grande parcela de jornalistas e cidadãos apoia atos judiciais extremados, quando estes atingem trincheiras ideológicas opostas, ignorando que “pau que dá em Chico dá em Francisco”.


Nos últimos dias, de forma tímida, veículos mais tradicionais começaram a reconhecer como autoritárias algumas decisões da Corte Eleitoral. É o caso do editorial do dia 8 da “Folha de S.Paulo”, que pede parcimônia ao TSE e chama de censura decisões envolvendo o jornal “Gazeta do Povo” e o site “O Antagonista”. Este último chegou a ser impedido até mesmo de noticiar que sofrera censura. O editorial de “O Globo” do dia 11 também abordou o assunto, recuperando a manchete da semana retrasada do diário “The New York Times”, que afirmara que, sob a sedutora justificativa de defender a democracia, as Cortes brasileiras estavam indo longe demais. 


O TSE sempre se posicionou de forma cristalina em relação à imprensa, propiciando a livre publicação de conteúdos jornalísticos durante o período eleitoral, manobrando os excessos com a concessão de direito de resposta. Nestas eleições, a coisa mudou de figura. Nas palavras do ministro Alexandre de Moraes, em uma palestra de setembro, seria preciso coibir “o desvirtuamento na finalidade de divulgação”. Em julgamento desta última quinta-feira, o TSE chegou a afirmar que há no Brasil um contexto de “desordem informacional” e que o foco da Corte deve ser ampliado, para alcançar também notícias jornalísticas, afinal “não é porque é mídia tradicional que pode falar o que bem entender” 


A verdade é que o TSE retira da imprensa o véu de boa fé que a Constituição lhe deu e que – na maior parte das vezes – as Cortes respeitam, conferindo à atividade jornalística o status de suspeita, de um potencial risco ao pleito eleitoral. A relação do Judiciário com a imprensa, aparentemente, deixa de ser o de mera moderação para se tornar o de ativa vigilância, função policialesca que lhe é estranha e certamente avessa ao que se espera de uma democracia.  Não quero dizer que o TSE age mal intencionado – é e sempre será um ator importante nas eleições –, mas o subjetivismo do que passa a entender por conteúdo passível de banimento gera tanta insegurança, que sua interferência, como nos casos retratados nos editoriais, agride o ambiente público tanto ou mais que a própria inverdade. 


A remoção de conteúdos durante as eleições não é por si só um ato de censura. O artigo 9-A da Resolução 23.671/21 permite que conteúdos “sabidamente inverídicos” sejam removidos. Isso significa que não basta serem interpretados como inverdades; precisam ser cunhados na má fé, na intenção dolosa, na mentira de caso pensado. Esse detalhe conceitual faz toda a diferença, pois é o que garante proteção à imprensa. É plenamente possível que, por exemplo, um jornalista publique uma reportagem que contradiga o que até então se acreditava como verdade a respeito de um assunto. Aliás, é justamente esse o trabalho do jornalismo investigativo: trazer a público fatos novos que embaracem verdades ou inverdades acomodadas. Uma interpretação precipitada do conceito de inverdade é passível de tornar ilícito o exercício do jornalismo investigativo no período eleitoral.


Retirar de circulação apenas o que é sabidamente inverídico significa que é injustificável a remoção até mesmo de conteúdo jornalístico controverso, em nome de não se constranger nem criminalizar a imprensa. Não se cogita sequer a responsabilização dos envolvidos; no máximo, o direito de resposta pode ser concedido à parte retratada, propiciando que jornalismo gere mais jornalismo, que o debate gere mais debate. O conteúdo de um veículo de comunicação, portanto, somente deve ser banido, se o jornalista ou o veículo comprovadamente souber que o relatado é inverdade incontestável e, mesmo assim, o publicar. Nesse caso, a retirada do conteúdo não será um ato de censura, pois não se trata de informação, nem se está fazendo jornalismo, e a intenção será combater a fraude no debate público. 


Vidal Serrano, ao tratar da liberdade de expressão, afirma com acerto que todo discurso é passível de possuir conteúdo manipulado. O jornalístico, no entanto, é aquele que não pode ser manipulado intencionalmente. O jornalista não pode possuir a intenção de manipular seu discurso. A intenção separa um jornalista de um não jornalista. E é também isso que separa um juiz de um censor, uma Corte de um lugar sinistro. O jornalismo, a não ser quando sabidamente de má fé, ou seja, fora do exercício de sua finalidade, não pode ter como editor um ministro, não pode prestar contas de suas escolhas editoriais a uma Corte, não pode ser constrangido em sua função de fiscalizar e denunciar. 


Não se pode tudo em nome da democracia, sobremaneira, tornar a democracia um lugar estreito a ponto de sufocar a si própria.



André Marsiglia Santos é advogado. Escreve sobre Direito e Política.

andremarsiglia.com.br

@marsiglia_andre





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