Uma aula de Brasil

No dia 19 de dezembro, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), cassou sozinho um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) que tinha suspendido o pagamento de quase R$ 1 bilhão em penduricalhos a juízes federais. Trata-se do chamado Adicional por Tempo de Serviço (ATS), mais conhecido como quinquênio: o aumento automático de 5% a cada cinco anos nos contracheques dos magistrados.


O argumento do ministro Toffoli foi de que o TCU não tem competência para controlar os atos do Conselho da Justiça Federal (CJF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Com isso, magistrados que ingressaram na carreira na década de 90, por exemplo, poderão embolsar até R$ 2 milhões cada um.


A decisão de Dias Toffoli é uma aula de Brasil real. Engana-se quem pensa que o Estado brasileiro não funciona. Na defesa de interesses corporativos, a Justiça é de uma eficácia absolutamente espetacular. Não parece haver nada capaz de barrar o efetivo pagamento de benefícios a magistrados, mesmo que esses benefícios sejam manifestamente imorais e ilegais. Ao fim, o Judiciário sempre encontra um argumento para assegurar que os recursos públicos cheguem aos bolsos particulares dos ilustres membros da elite do funcionalismo público.


No caso, a razão alegada foi a suposta incompetência do TCU. É simplesmente assustador. Quando um órgão estatal tenta fazer sua parte, lembrando que deve haver um mínimo de moralidade na vida pública, logo surge uma autoridade dizendo que isso está fora das atribuições do órgão. A competência seria do CNJ e do CJF.


O peculiar é que ninguém na Justiça adverte que, apesar da competência originária do CNJ e do CJF para conter os abusos administrativos do Judiciário, esses dois órgãos são descaradamente ineficientes no cumprimento de suas atribuições. Com isso, realiza-se uma inversão de finalidades. Criados na reforma do Judiciário, pela Emenda Constitucional (EC) 45/2004, como forma de prover um padrão mínimo de moralidade – a sociedade estava cansada de tanto escândalo e de tanto privilégio –, eles se converteram em instrumento de manutenção dessas desigualdades e desequilíbrios. Não cumprem suas funções e se, eventualmente, algum outro órgão estatal menciona a existência de uma ilegalidade, brota logo uma decisão judicial – às vezes, vinda até de ministro da mais alta Corte do País – afirmando muito soberanamente que a competência é do CNJ e do CJF. Assim, os privilégios são irretocavelmente mantidos.


Nesta aula chamada Brasil, há uma grande seção dedicada à incoerência: os rigores são caprichosamente seletivos. Ao defender a competência exclusiva do CNJ e do CJF, por exemplo, a interpretação da lei é enviesadamente literal e disfuncionalmente taxativa. Mas, em outras situações, há toda uma larguíssima tolerância. Basta ver que a ação na qual o ministro Toffoli proferiu a liminar foi ajuizada pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe), uma entidade de caráter privado que, por sua própria natureza, não tem capacidade para atuar judicialmente em nome da categoria, mas tão somente na defesa dos interesses privados de seus associados. No entanto, na promoção dos anseios da elite do funcionalismo público, nenhum empecilho formal ou burocrático deve existir. Tão nobres aspirações demandam pista livre.


Parece um mundo perfeito, de total imunidade, mas deve-se advertir. Por mais que haja tolerância e condescendência do Judiciário, por mais que a consciência cívica e moral esteja extremamente laxa nos tempos atuais, os escândalos não passam despercebidos pela sociedade – e entram para a biografia de seus partícipes. Afinal, como ignorar que o quinquênio, que contou com decisão favorável do ministro Dias Toffoli em pleno 2023, foi extinto em 2006?


Sim, no mundo maravilhoso dos juízes, privilégios de 15 anos atrás podem ressuscitar, transformando-se em cheques de R$ 2 milhões. Não há dúvida de que, para eles, se trata de um genuíno conto de fadas. Mas, para o restante do País, é uma história de terror, asfixiante e sem fim.


A

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