O discurso empoado dos nossos magistrados não ofusca o
sentimento de repúdio
Não por acaso, quando se quer ridicularizar a legislação,
se diz jocosamente que determinadas leis só servem para punir os ladrões de
galinha, quando se considera como delitos equivalentes o pão surrupiado pelo
pai da família faminta e o desvio de verba da merenda escolar pelo político
corrupto.
A maioria da população, que escapou da sociopatia
genética e foi educada sob os preceitos do fazer o que é certo, ou mais
rigoroso ainda, seguir a recomendação de Kant ("Tudo o que tiver
dificuldade de explicar como fez, não faça!") se sente ultrajada com as
discrepâncias legais, com normas para as quais se pode até alegar boa intenção,
mas sem obscurecer a obviedade de que nem tudo o que é legal, é ético.
Com o caminho aberto para a canalhice, chegamos ao ponto
de festejar a fortuna e a ascensão social de vigaristas habilidosos em
arquitetar manobras espetaculares, capazes de colocá-los em patamares de
admiração da população mais humilde, visivelmente cansada da humildade. Estamos
exaustos da integridade sem recompensa ou assumimos que o lamentável das
negociatas é não termos sido convidados, como já advertira o Millôr?
Sempre que deixamos de dizer o que "tinha de ser
dito", encolhemosSempre que deixamos de dizer o que "tinha de ser
dito", encolhemos
Depois dos 60 anos, a morte continua sendo lamentável,
mas deixa de ser espetacularDepois dos 60 anos, a morte continua sendo
lamentável, mas deixa de ser espetacular
Os fragmentos escorregadios da memóriaOs fragmentos
escorregadios da memória
Quando surge um movimento de depuração coletiva, a reação
inicial da canalhada, como se pode presumir, é de pânico. Isso foi observado,
com entusiasmo, nos primeiros movimentos da Lava-Jato, e provocou na população
geral a ingênua euforia de que agora vamos, e não haveria tapete que bastasse
para cobrir tanta sujeita. Com a passagem do tempo, se percebeu que esse
sentimento foi se esvaindo com a naturalidade com que os acusados, protegidos
pelo biombo do foro privilegiado e por recursos, embargos e embargos dos
embargos, negavam acusações completamente documentadas.
Quando ficou visível que mais importante do que ser
condenado para o cumprimento de uma pena é saber quem está sendo sentenciado, o
desânimo se multiplicou, chegando ao ápice quando se permitiu que alguém com
prisão decretada atrasasse a apresentação no cárcere para proferir um discurso
etílico/patético, conclamando o pobre povo que lidera a bloquear estradas e
seguir com as invasões no campo e na cidade, tudo em seu nome, ou seja, com
impunidade assegurada. Naquela tarde, respeito e dignidade foram
ridicularizados.
Curiosos, aguardamos a manifestações dos nossos
magistrados face a essa aberração jurídica e fomos surpreendidos com a notícia
de que a única medida em andamento era a revisão das prisões em segunda
instância, com óbvia intenção de abrir as portas da prisão. A mídia, que se
omitiu de comentar a bizarrice desse episódio, reconheceu como louvável o
envolvimento atual da sociedade, a ponto de muita gente saber o nome da maioria
dos ministros, mas foi deprimente descobrir que os votos deles são previsíveis,
porque a Suprema Corte parece partidarizada, o que quer dizer que a chamada
interpretação da lei nada mais é do que a adequação dela à ideologia de cada
um.
Desde sempre se repete que o reconhecimento que um país
possa merecer na comunidade das nações depende do apreço que o povo tenha pelo
seu sistema judiciário. E como respeito é irmão da confiança, nada poderia ter
sido pior do que a morte do respeito. Que começou quando sentimos um impulso
incontrolável de vaiar os juízes da nossa Suprema Corte. O discurso empoado dos
nossos magistrados, envoltos em togas imponentes, não consegue ofuscar o
sentimento de repúdio que brota no íntimo das pessoas mais humildes, que não
têm conhecimento das artimanhas legais, mas conservam intacta no coração a
noção mais elementar de justiça.
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