STF e o incentivo à litigiosidade no desvirtuamento da reclamação constitucional

Novo Código de Processo Civil não resolveu problema da litigiosidade e sobrecarrega o Supremo


É consenso na comunidade jurídica a noção de que o sistema de precedentes trazido pelo novo Código de Processo Civil não resolveu o problema da litigiosidade. A sobrecarga do Supremo Tribunal Federal persiste, e compromete a celeridade e a eficiência da jurisdição.


Como noticiado pelo próprio tribunal, houve um incremento significativo do número de reclamações perante o STF. A página oficial[1] informa que em junho de 2024 já eram mais de 3.300 reclamações em tramitação, representando o maior volume no acervo de ações originárias da corte. Quais as razões para esse aumento?


Não há dúvidas de que a partir do novo CPC/2015[2] o número de reclamações passou a crescer em atenção às novas hipóteses de cabimento. Por outro lado, o STF, com o plenário virtual e alterações regimentais, elevou o número de julgamentos, o que ampliou a jurisprudência. Isso explica em parte um maior número de reclamações, como consequência do incremento dos paradigmas.


Mas não é só isso. O aumento decorre, também, do descumprimento das decisões do STF pelo próprio STF. Quando a mais alta corte do país desconsidera seus próprios precedentes, contribui para a intensificação da litigiosidade e mitiga a autoridade dos seus pronunciamentos.


Não se nega, por óbvio, o overruling – quando o tribunal supera seu entendimento anterior[3]. O que se pretende afirmar é que, para que o julgado emane seu esperado efeito vinculativo, ele deverá, por pressuposto, ser observado pela própria corte que o gerou[4].


Não deveria haver – mas há – julgamentos proferidos pelas Turmas do STF em descompasso com os precedentes plenários; tampouco deveria haver – mas há – decisões monocráticas dissonantes do entendimento das Turmas. Essa é uma realidade que se estende ao cabimento das reclamações, com reflexos sobre a ampliação do seu manejo.


A reclamação constitucional encontra limites bem definidos pelo STF: não se presta a substituir recursos ou ações; não serve como atalho processual para a submissão de litígio à corte nem discute questões não aderentes ao paradigma tido por desrespeitado[5]. Não obstante, o que temos presenciando é uma perigosa desconsideração das balizas de cabimento dessa medida excepcional.


Temos testemunhado a chancela do STF para a utilização do instituto da reclamação de forma demasiado elastecida, revelando decisões destoantes do posicionamento do plenário, além de julgados em sentidos opostos proferidos pelo mesmo órgão julgador.


Não há dúvidas quanto à importância do instituto da reclamação para a preservação da autoridade das decisões do Supremo. É imprescindível, todavia, que haja segurança jurídica também quanto ao seu cabimento.


Essa discussão se tem colocado, recentemente, no julgamento de reclamações contra atos administrativos. Há decisões que desconsideram a sólida jurisprudência que restringe o cabimento da reclamação à específica hipótese de contrariedade a súmula vinculante e esgotamento das vias administrativas. Outras decisões superam abertamente óbices como a ausência de aderência estrita ou o reexame probatório.


Exemplifica-se: no sentido do cabimento restrito da reclamação contra ato administrativo, Rcl 60.348, Min. Dias Toffoli; Rcl 55.189, Min. André Mendonça[6]; Rcl 26.650, Min. Roberto Barroso; Rcl 51.212, Min. Alexandre de Moraes. Em sentido diametralmente oposto, pela admissão e provimento da reclamação contra ato administrativo contraposto a precedente proferido em controle concentrado e sem esgotamento administrativo: Rcl. 64.608, Min. Alexandre de Moraes; Rcl. 58.665, Min. André Mendonça; Rcls 52.723, 62.948 e 66.526, Min. Cristiano Zanin.


Essa análise revela também que reclamações lastreadas no descumprimento dos mesmos precedentes de controle concentrado[7] e em situações análogas foram deslindadas em sentidos antagônicos, seja pelo não cabimento pela impossibilidade de reexame probatório e ausência de estrita aderência[8], seja pelo cabimento e provimento, flexibilizada a regra sob o fundamento de excepcionalidade demasiado abrangente[9].


Note-se que muitas dessas decisões encontram-se em segredo de justiça, circunstância que – aliada à impossibilidade de manejo de embargos de divergência – impede que tais incongruências sejam levadas à apreciação do Plenário.


A inobservância das balizas de conhecimento desnatura o instituto da reclamação, transformando-a em via de acesso direto e ordinário à Corte Suprema, em clara supressão de instância e comprometimento da prestação jurisdicional. Mas, mais grave, a superação desordenada de uma jurisprudência consolidada contraria o princípio isonômico e a segurança jurídica, bem como fomenta a litigiosidade.


Na busca por um sistema uniforme, previsível e igualitário, talvez seja o caso de o legislador prever o cabimento de reclamação endereçada ao plenário do STF contra atos decisórios de ministros ou das Turmas da Suprema Corte, quando suas decisões estiverem em desacordo com seus precedentes vinculantes.


Chega-se a um ponto em uma intervenção desse quilate – a instituição da reclamação da reclamação – traduziria uma fórmula para dar densidade ao princípio democrático. Trata-se, em realidade, de um problema político e de respeito à teoria dos precedentes no Brasil, não só pelos órgãos judiciais e administrativos, mas pela mais alta corte do país em relação aos seus próprios precedentes.


[1]

Disponível em

https://transparencia.stf.jus.br/extensions/reclamacoes/reclamacoes.html


[2]

O art. 988 do CPC, prevê as seguintes hipóteses para o cabimento da reclamação: a) preservar a competência do tribunal; b) garantir a autoridade de decisões do tribunal; c) garantir o respeito a verbete de Súmula vinculante; d) assegurar a observância de decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em controle concentrado de constitucionalidade; e, ainda, e) assegurar a observância de precedente resultante do julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.


[3]

art. 927, §§ 3º e 4º, do CPC.


[4]

“A primeira condição para que exista segurança jurídica pelo precedente é que esse seja respeitado pela própria corte que o emanou.” (MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas. 4ª ed. Revista dos Tribunais, São Paulo: 2022, p. 117.)


[5]

Rcl 16.585, Min. ROSA WEBER, j. 30.08.2016.


[6]

“(...) O ato questionado é ato de Tribunal de Contas, a observar, para admissão da via reclamatória, a violação a entendimento adotado pela Corte Suprema em Súmula Vinculante, nos termos do art. 103, § 3º, da CRFB: (...)”


[7]

ADPF 324/DF, ADC 48/DF, TEMA 725/RG, ADC 66/DF.


[8]

Rcl. 61.438, Min. CRISTIANO ZANIN, j. em 09.10.2023; Rcl 47.699, Min. NUNES MARQUES, j. 17.03.2022; Rcl. 52.167, Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 09.05.2022; Rcl 50.319, Min. ROSA WEBER, j. 19.09.2022; Rcl 46756, Min. ANDRÉ MENDONÇA, j. em 02/07/2022.


[9]

Rcl. 58.665, Min. ANDRÉ MENDONÇA; Rcl 52.723, 62.948 e 66.526, Min. CRISTIANO ZANIN, j. em 15.03.2024, 25.03.2024 e 23.05.2024.logo-jota


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Luciana Miranda Moreira

Procuradora da Fazenda Nacional com atuação perante o STF e mestranda no Mestrado Profissional em Direito Tributário da FGV-SP


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Patrícia Grassi Osório

Procuradora da Fazenda Nacional com atuação perante o STF e mestranda no Mestrado Profissional em Direito Tributário da FGV-SP

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