Eu me refiro à semana passada, quando um cuidadoso
trabalho da editoria Rio levou ao ar no Jornal Nacional uma reportagem sobre o
Caso Marielle que gerou grande repercussão. A origem da reportagem remonta ao
dia 1° de outubro, quando a editoria teve acesso a uma página do livro de
ocorrências do condomínio em que mora Ronnie Lessa, o acusado de matar
Marielle. Ali, estava anotado que, para entrar no condomínio, o comparsa dele,
Elcio Queiroz, dissera estar indo para a casa 58, residência do então deputado
Jair Bolsonaro, hoje presidente da República. Isso era tudo, o ponto de
partida.
Um meticuloso trabalho de investigação teve início:
aquela página do livro existiu, constava de algum inquérito? No curso da
investigação, a editoria confirmou que o documento existia e mais: comprovou
que o porteiro que fez a anotação prestara dois depoimentos em que afirmou que
ligara duas vezes para a casa 58, tendo
sido atendido, nas palavras dele, pelo “seu Jair”. A investigação não parou.
Onde estava o então deputado Jair Bolsonaro naquele dia? A editoria pesquisou
os registros da Câmara e confirmou que o então deputado estava em Brasilia e
participara de duas votações, em horários que tornavam impossível a sua
presença no Rio. Pesquisou mais, e descobriu vídeos que o então deputado
gravara na Câmara naquele dia e publicara em suas redes sociais. A realidade
não batia com o depoimento do porteiro.
Em meio a essa apuração da Rio (que era feita de maneira
sigilosa, com o conhecimento apenas de Bonner, Vinicius, as lideranças da Rio e
os autores envolvidos, tudo para que a informação não vazasse para outros
órgãos de imprensa), uma fonte absolutamente próxima da família do presidente
Jair Bolsonaro (e que em respeito ao sigilo da fonte tem seu nome preservado),
procurou nossa emissora em Brasilia para dizer que ia estourar uma grande
bomba, pois a investigação do Caso Marielle esbarrara num personagem com foro
privilegiado e que, por esse motivo, o caso tinha sido levado ao STF para que
se decidisse se a investigação poderia ou não prosseguir. A editoria em Brasilia,
àquela altura, não sabia das apurações da editoria Rio. Eu estranhei: por que
uma fonte tão próxima ao presidente nos contava algo que era prejudicial ao
presidente? Dias depois, a mesma fonte perguntava: a matéria não vai sair?
Isso nos fez redobrar os cuidados. Mandei voltar a
apuração quase à estaca zero e checar tudo novamente, ao mesmo tempo em que a
Editoria Rio foi informada sobre o STF. Confirmar se o caso realmente tinha ido
parar no Supremo tornava tudo mais importante, pois o conturbado Caso Marielle
poderia ser paralisado. Tudo foi novamente rechecado, a editoria tratou de se
cercar de ainda mais cuidados sobre a existência do documento da portaria e dos
depoimentos do porteiro. Na terça-feira, dia 29 de outubro, às 19 horas, a
editoria Rio confirmou, sem chance de erro, que de fato o MP estadual
consultara o STF.
De posse de todas esses fatos, informamos às autoridades
envolvidas nas investigações que a reportagem seria publicada naquele dia, nos
termos em que foi publicada. Elas apenas ouviram e soltaram notas que diziam
que a investigação estava sob sigilo. Informamos, então, ao advogado do
presidente Bolsonaro, Frederick Wassef, sobre o conteúdo da reportagem e
pedimos uma entrevista, que prontamente aceitou dar em São Paulo. Nela, ele desmentiu
o porteiro e, confirmando o que nós já sabíamos, disse que o presidente estava
em Brasília no dia do crime. Era madrugada na Arábia Saudita e em nenhum
momento o advogado ofereceu entrevista com o presidente.
A reportagem estava pronta para ir ao ar. Tudo nela era
verdadeiro: o livro da portaria, a existência dos depoimentos do porteiro, a
impossibilidade de Bolsonaro ter atendido o interfone (pois ele estava em
Brasilia) e, mais importante, a possibilidade de o STF paralisar as
investigações de um caso tão rumoroso. É importante frisar que nenhuma de
nossas fontes vislumbrava a hipótese de o telefonema não ter sido dado para a
casa 58. A dúvida era somente sobre quem atendeu e só seria solucionada após a
decisão do STF e depois de uma perícia longa e demorada em um arquivo com mais
de um ano de registros. E isso foi dito na reportagem. Quem, de posse de
informações tão relevantes, não publica uma reportagem, com todas as cautelas
devidas, não faz jornalismo profissional.
Hoje sabemos que o advogado do presidente, no momento em
que nos concedeu entrevista, sabia da existência do áudio que mostrava que o
telefonema fora dado, não à casa do presidente, mas à casa 65, de Ronnie Lessa.
No último sábado, o próprio presidente Bolsonaro disse à imprensa: “Nós
pegamos, antes que fosse adulterada, ou tentasse adulterar, pegamos toda a
memória da secretária eletrônica que é guardada há mais de ano".
Por que os principais interessados em esclarecer os
fatos, sabendo com detalhes da existência do áudio, sonegaram essa informação?
A resposta pode estar no que aconteceu nos minutos subsequentes à publicação da
reportagem do Jornal Nacional.
Patifes, canalhas e porcos foram alguns dos insultos,
acompanhados de ameaças à cassação da concessão da Globo em 2022, dirigidos
pelo presidente Bolsonaro ao nosso jornalismo, que só cumpriu a sua missão,
oferecendo todas as chances aos interessados para desacreditar com mais
elementos o porteiro do condomínio (já que sabiam do áudio).
Diante de uma estratégia assim, o nosso jornalismo não se
vitimiza nem se intimida: segue fazendo jornalismo. É certo que em 37 anos de
profissão, nunca imaginei que o jornalismo que pratico fosse usado de forma tão
esquisita, mas sou daqueles que se empolgam diante de aprendizados. No dia
seguinte, já não valia o sigilo em torno do assunto, alegado na véspera para
não comentar a reportagem do JN antes de ela ir ao ar. Houve uma elucidativa
entrevista das promotoras do caso, que divulgamos com o destaque merecido: o telefonema
foi feito para a casa 65, quem o atendeu foi Ronnie Lessa, tudo isso levando as
promotoras a afirmarem que o depoimento do porteiro e o registro que fez em
livro não condizem com a realidade. O Jornal Nacional de quarta exibiu tudo,
inclusive os ataques do presidente Bolsonaro ao nosso jornalismo, respondidos
de forma eloquente e firme, mas também serena, pela própria Globo, que honra a
sua tradição de prestigiar seus jornalistas. Estranhamente, nenhuma outra
indagação da imprensa motivada por atitudes e declarações subsequentes do
presidente foi respondida. O alegado sigilo voltou a prevalecer.
Mas continuamos a fazer jornalismo. Revelamos que a
perícia no sistema de interfone foi feita apenas um dia depois da exibição da
reportagem e num procedimento que durou somente duas horas e meia, o que tem
sido alvo de críticas de diversas associações de peritos.
Conto tudo isso para dar os parabéns mais efusivos à
editoria Rio. Seguiremos fazendo jornalismo, em busca da verdade. É a nossa
missão. Para nós, é motivo de orgulho. Para outros, de irritação e medo.
Ali Kamel