Armas e munições fabricadas no Brasil estão sendo usadas
pelo mundo para reprimir protestos e para alimentar conflitos. Durante a
Primavera Árabe, em 2011, por exemplo, as forças de segurança de diversos
governos se valeram de armas fabricadas no Brasil.
Dois anos depois, armamentos nacionais voltaram a ser
utilizados na praça Taksim, em Istambul, onde manifestantes foram brutalmente
combatidos por polícia e Exército turcos. Polícia e Guarda Nacional da
Venezuela também empregaram artefatos não letais brasileiros para silenciar
opositores.
Recentemente, pesquisadores encontraram foguetes de
fabricação brasileira na guerra civil do Iêmen. Essas armas de fragmentação
podem ferir ou matar civis muito tempo depois de disparadas. Elas são
projetadas de forma a se detonar ao atingir o solo; mas às vezes, não explodem
no momento do contato e permanecem inativas, à espera de vítimas desavisadas.
A natureza imprevisível das armas de fragmentação levou
cem países a proibir sua produção, armazenamento e uso. O Brasil não está entre
eles.
Gás lacrimogêneo, balas, armas e sistemas de foguetes
fabricados no país estão surgindo em mais lugares conflagrados do que se
imagina. Apesar dos inúmeros relatos sobre as nefastas consequências
involuntárias de armas, os fabricantes continuam a negociá-las em grande
quantidade.
O resultado é que a reputação conquistada com muito
esforço pelo país por promover a paz e prevenir conflitos sofre abalos. Para
entender melhor esse quadro, é importante considerar alguns atores envolvidos.
Tomemos o caso da Condor, fabricante com sede em Nova
Iguaçu (RJ), que forneceu armas não letais a mais de 40 clientes, entre os
quais os governos do Egito, da Turquia e de países do Golfo Pérsico.
A Venezuela também é um cliente valioso da Condor, tendo
adquirido da empresa, entre 2008 e 2011, 143 toneladas de produtos –pelo menos
US$ 6,5 milhões (R$ 22,3 mi, em valores atuais) em bombas de efeito moral, gás
lacrimogêneo e balas de borracha.
Em janeiro de 2016, produtos da Condor foram empregados
para reprimir protestos pacíficos no Bahrein, país criticado recorrentemente
pela prática de detenções ilegais e de tortura.
Em 2011, quando imagens divulgadas por opositores da
monarquia barenita mostraram bombas de gás lacrimogêneo idênticas às da Condor
que teriam sido usadas pela repressão, a empresa fluminense soltou comunicado
em que afirmava nunca ter exportado itens para a ilha. Mas ressalvava:
"[...] tropas de pelo menos cinco países da região estão operando no
Bahrein a pedido do governo".
Consideremos também a Avibras Indústria Aeroespacial,
sediada em São José dos Campos (SP), que produz o Astros, um sistema de
lançadores múltiplos de foguetes usado recentemente na guerra civil iemenita.
Investigadores associados à Anistia Internacional descobriram munições não
detonadas em uma área agrícola do Iêmen depois de um ataque com foguetes de
fragmentação.
A empresa afirma estar investigando o incidente, mas
ainda não esclareceu como suas armas foram parar no país. Os artefatos parecem
ter sido usados por forças da coalizão liderada pela Arábia Saudita no fim de
2015, ferindo várias pessoas, inclusive uma menina de quatro anos.
TRAFICANTE
A Forjas Taurus, maior empresa do ramo na América Latina,
negociou armas com regimes que violam direitos humanos. Em maio de 2016, o
Ministério Público Federal denunciou dois ex-diretores da corporação por
venderem 8.000 pistolas a um reconhecido traficante de armas iemenita, em 2013.
Os executivos acertavam uma segunda remessa, em 2015, quando a transação foi
interceptada.
Em nota de setembro passado, a empresa diz repudiar
"veementemente a alegação de que estaria envolvida em qualquer operação
irregular" e afirma que o destinatário do lote de 2013 era o governo do
Djibuti, país sobre o qual não incidem embargos comerciais. Informa também ter
cancelado negociações com o país africano, determinado a retenção da mercadoria
em trânsito e devolvido o pagamento ao referido governo ao tomar conhecimento
das suspeitas contra o intermediador iemenita.
Essas empresas, além de outras, como a Companhia
Brasileira de Cartuchos (CBC), fizeram do Brasil um dos maiores fornecedores de
armamento do planeta. Nos últimos anos, o país tem figurado como o quarto maior
exportador mundial de munição e armas de pequeno porte. Entre 2001 e 2012,
enviou para o exterior um total de US$ 2,8 bilhões (R$ 9,6 bi) em produtos
desse tipo. Só EUA, Itália e Alemanha venderam mais.
Diferentemente do que ocorre nesses três países, que
impõem mecanismos para limitar vendas a regimes suspeitos e adotam salvaguardas
para evitar e investigar o desvio ilegal de armas a terceiros, os itens
brasileiros estão cada vez mais sendo encontrados em países com históricos
alarmantes de violações de direitos humanos.
O desejo do governo de promover o crescimento da
indústria armamentista está em desacordo com sua política externa oficial.
Tomemos como exemplo o caso do conflito iemenita, que matou mais de 10 mil
pessoas e deslocou cerca de 3 milhões. O Brasil condenou os ataques na
Península Arábica. Em acordo bilateral, ofereceu assistência. Mas longe de
colaborar para o fim do conflito, a venda de armas brasileiras agrava a
situação, já preocupante.
Ou seja, as políticas de comercialização de armas do
Brasil solapam esforços diplomáticos e humanitários. O país envia armas para a
Arábia Saudita, que lidera campanha devastadora de bombardeio no Iêmen para
eliminar combatentes rebeldes houthis, contrários ao governo apoiado pelos EUA
e pela própria Arábia Saudita. Só no ano passado, o Brasil exportou para lá o
equivalente a mais de US$ 100 milhões (R$ 344,4 mi) em artefatos.
Depois de anos apoiando o regime saudita, Reino Unido e
EUA estão sendo fortemente pressionados a reconsiderar a maneira como as vendas
de armas contribuem para o desastre humanitário iemenita. No Brasil, poderosos
interesses bloqueiam mudanças no status quo do setor.
O lucro –e não imperativos de política externa– é o fator
decisivo quando se trata de exportações de armas no Brasil. Em meados dos anos
1980, por exemplo, o país vendeu artefatos tanto para o Irã quanto para o
Iraque, armando Estados adversários e ajudando a alimentar uma guerra que se
arrastou por oito anos.
O programa oficial de exportação de armas e as relações
cordiais entre agências e empresas têm origem na ditadura. Desde sua criação,
em 1974, a Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar
(PNEMEM) sofreu quatro reformas: em 1981, 1983, 1990 e 1993. Nenhuma delas
resultou em mais transparência ou maior controle das exportações.
Ao contrário, a CBC e a Taurus fizeram um lobby
bem-sucedido em 1981 para abrandar a PNEMEM, de modo a permitir vendas de armas
a compradores privados estrangeiros, e não apenas a governos. A política de
exportação de armas do Brasil também passou essencialmente ilesa à Constituição
de 1988 –e até adotou a linguagem da Constituição de 1967.
A volta à democracia não trouxe nenhuma mudança fundamental.
Aliás, se houve alguma, foi o aumento da produção e da venda. Os governos do PT
estavam fortemente comprometidos com o fomento da indústria de defesa. Na
gestão Lula, a Estratégia Nacional de Defesa (END) propôs uma reorganização
radical da indústria. O texto recomendava que o Ministério da Defesa propusesse
modificações legislativas que franqueassem aos fabricantes acesso a linhas de
crédito especiais do BNDES.
No entanto, mesmo quando a economia do Brasil vivia um
forte crescimento e o país surfava a onda das commodities, alguns fabricantes
de artigos de defesa, como a Avibras, enfrentaram dificuldades.
Em setembro de 2011, a então presidente Dilma Rousseff
enviou ao Congresso uma Medida Provisória para fortalecer e incentivar o setor
de fabricação de armas. Seis meses depois, aprovou-se a lei 12.598/2012,
criando isenções de IPI, PIS/Pasep e Cofins em todas as compras do governo de
produtos de defesa, bem como suspendendo o imposto de importação sobre
matérias-primas. Os incentivos representaram economia de 13% a 18% no balanço
dessas empresas.
EMPRÉSTIMOS
Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação
revelam que, de 2008 a 2015, a Forjas Taurus recebeu R$ 53.403.381 em
empréstimos a juros baixos do BNDES, mais do que qualquer outra empresa. Apenas
em 2013, ano em que, segundo o Ministério Público Federal, a Taurus vendeu as
8.000 pistolas ao traficante de armas iemenita, a corporação obteve R$
31.928.961.
A CBC, que comprou a Taurus em 2014 e é hoje sua
acionista majoritária, recebeu R$ 9.232.674 entre 2008 e 2014. Nesse mesmo
período, todo o setor de defesa do país –com exceção do subsetor da Aeronáutica–
se beneficiou de R$ 225.504.671 em empréstimos, atingindo picos em 2009 (R$
35.212.709), 2012 (R$ 40.242.637) e 2013 (R$ 58.160.835). Em 2014, os
empréstimos caíram bruscamente.
O Brasil pode salvar sua reputação de promotor da paz se
reforçar sua regulação sobre armas. Há sinais nessa direção. Em 2013, o país
foi um dos primeiros a assinar o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA),
acordo mundial legalmente vinculante que compromete signatários a alinhar
políticas de exportação de armas a padrões de respeito a direitos humanos.
Porém, apesar de ter rubricado o documento, o Brasil não
está dando seguimento ao processo de ratificação, hoje parado na Câmara dos
Deputados. Por isso, o país ficou fora das últimas deliberações do acordo.
Durante a Segunda Conferência dos Estados-Parte, os diplomatas brasileiros
foram relegados à condição de observadores e não tiveram nenhum poder de
influenciar o processo.
Nesse meio-tempo, o Brasil emitiu declaração previsível
de que "adotou um sistema nacional de controle de exportação de armas que
cumpre, em grande medida, as obrigações do TCA".
Outro ator importante que se opõe a uma regulação sensata
das armas, tanto no circuito internacional quanto dentro do país, é a chamada
bancada da bala. Desde sua formação, há mais de uma década, esse conjunto de
parlamentares trabalha para abrandar as leis que regulam as armas e para
expandir o acesso a elas.
Entre seus membros, todos ultraconservadores, há
ex-militares e ex-policiais que receberam contribuições de campanha
substanciais de empresas do setor de defesa. Só a CBC doou R$ 615 mil a 16
candidatos de nove siglas na campanha de 2014.
A bancada da bala havia conseguido, em 2005, com apoio da
National Rifle Association (NRA), dos EUA, derrubar a proibição à compra de
armas por civis em um referendo nacional. Como era de se esperar, esses
deputados repudiaram abertamente o TCA.
Há algumas medidas práticas que o Brasil pode tomar para
melhorar o modo como lida com o controle das transferências de armas. Para
começar, precisa ratificar o TCA.
O governo também tem de promover a reforma da PNEMEM para
alinhá-la aos padrões internacionais. Isso inclui o fortalecimento da
transparência e da responsabilização no processo de licenciamento e exportação
a cargo do Exército e a integração de sua base de dados de exportação de armas,
o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (SIGMA), com a da Polícia Federal,
o Sistema Nacional de Armas (SINARM).
O Brasil deveria, ainda, implementar um programa de
"compliance" (responsabilização legal) do usuário final por meio de
suas embaixadas. E, finalmente, para evitar uma interferência indevida nas
políticas de exportação de armas, é fundamental limitar o financiamento de
campanhas por representantes do setor de defesa.
Se o país quer verdadeiramente promover a paz, precisa de
uma regulação das armas responsável. É contraproducente buscar soluções
diplomáticas por um lado e alimentar conflitos por outro.