Quando o nome dos ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF) é conhecido pelo
povo em todo o País; quando se consegue antecipar o voto
dos ministros sem errar;
quando ministros se agridem oralmente, usando linguagem
vulgar nas sessões; quando
não hesitam em atropelar competências, a comprometer a
segurança jurídica; isso só
pode significar que o STF está numa trajetória equivocada
de afirmar a sua
superioridade política sobre os demais Poderes e está
irreversivelmente enredado na
política... É um desastre anunciado que já se instalou na
Corte: a política está
expulsando o Direito do tribunal.
O fato inegável é que o STF tem competências que o
diferenciam do Executivo e do
Legislativo. O poder de decretar a inconstitucionalidade
de um diploma legal é exclusivo
dele, afeta os outros dois Poderes sem ser por eles
afetado. O STF não é um órgão
eleito pelo povo, não está sujeito a mandato fixo, salvo
por idade, e tem seus ministros
indicados pelo Executivo e aprovados pelo Legislativo. Os
freios da escolha popular ou
do mandato com prazo fixo não o atingem. Por fim, é a
última instância não só do
Judiciário, como do sistema político em matéria jurídica.
Se o Judiciário tem esse poder que pode levá-lo a
considerar-se superior aos outros
dois, este também é o seu calcanhar de Aquiles.
Tribunais superiores, em regra, acautelam-se no exercício
desses poderes. Não
pretendem ser populares, detestam as especulações
jornalísticas, proíbem fotografia,
gravação ou filmagem de suas atividades, não dão
entrevistas e evitam a todo o custo
envolver-se na política. Preservam religiosamente sua
discrição e sua independência, o
mistério e a magia da instituição. Sabem que o maior
inimigo da legitimidade da Corte é
o envolvimento político. São 11 ministros que sabem qual o
custo de tão elevada
função: evitar a política, manter sob reserva suas
características pessoais e evitar a
popularidade, que gera expectativas e pressões.
Nosso Supremo, guardadas as diferenças entre os sistemas
políticos de outras nações,
tem se mantido dentro desses parâmetros comportamentais a
maior parte do tempo.
Os casos desviantes sempre existiram, mas divisão por
motivos políticos, com
formação de blocos, controles de fidelidade e a ousadia
de submeter a segurança
1/3
formação de blocos, controles de fidelidade e a ousadia
de submeter a segurança
jurídica a interesses políticos não faziam parte da
história do STF.
Então, por que o STF cada vez mais se envolve em decisões
políticas? Porque a política
está expulsando o Direito do tribunal?
O próprio ex-presidente Lula respondeu a essa pergunta
quando da divulgação dos
telefonemas gravados pelo então juiz Sergio Moro. Neles o
ex-presidente exigia de seus
companheiros que “cobrassem” dos ministros o apoio de que
estava necessitando, a
revelar que a nomeação deles implicava a contrapartida em
votos no plenário. Se a
lógica do aparelhamento político precisava de
confirmação, o ex-presidente
encarregou-se de fornecê-la.
O ingresso da política no STF foi também coadjuvado pelo
próprio tribunal quando
liberou a transmissão das sessões pela TV. O público não
acompanharia sessões
técnicas, mas o faria nas sessões em que estavam em
julgamento questões políticas.
Mas a TV no STF teve mais consequências. Ministros
subitamente se tornaram figuras
públicas. Seus acertos, como seus erros, passaram a ser
vistos por todos, choveram
convites para eventos, jornalistas estavam sempre em
busca de entrevistas, sua
presença nos noticiosos era frequente. Ministros, sendo
11, eram mais presentes na
mídia do que as centenas de deputados e dezenas de
senadores. Nem mesmo os
presidentes das Casas Legislativas tinham cobertura de
mídia tão intensa. Conflitos
logo se tornaram públicos, o que exigia dos contendores
coerência na continuidade da
desarmonia.
A TV e a notoriedade pública envolveram os ministros do
STF, atraindo-os para um
protagonismo político para o qual não estavam preparados,
mas cuja atração se
revelou irresistível. Se a política entrou no STF, em boa
parte foi porque a TV entrou na
Corte.
Houve ainda um terceiro fator na politização da Corte.
Como a ação da Lava Jato
decorria numa comarca, sob a autoridade de um juiz
singular, a investigação
desembocava num processo e o processo conduzia ao
julgamento, à sentença e,
inevitavelmente, a recursos a instâncias superiores. A
leitura dos que já estavam
inoculados pela popularidade era de que um juiz de
primeira instância havia aplicado
uma capitis diminutio nos juízes do STF.
De início não se percebeu a desproporção que decorria da
entrega do maior caso de
corrupção da História do País a um jovem juiz singular.
Não era uma ação de governo
investigando suas entranhas, conduzida por autoridades de
espectro nacional. Era uma
ação em que o governo do País e suas autoridades surgiam
como suspeitos e, como
réus, ficaram sujeitos ao processo penal. Políticos,
empresários e servidores da mais
alta hierarquia acabaram submetidos à autoridade de um
jovem juiz de subseção.
Restaria ao STF, então, julgar recursos em matéria de
Direito, porque em matéria de
fato não havia mais o que fazer. E tudo o que surgia era
resultado da ação de um
juizado singular. Foi muito difícil para alguns ministros
aceitar essa aparente
humilhação. 2/3
Assim, Lava Jato e mensalão seguiram roteiros opostos
quanto à sua origem: a Lava
Jato deslocou-se de baixo para a cúpula do sistema
político; o mensalão, ao contrário,
nasceu e se extinguiu no STF.
Foi o mensalão televisionado, entretanto, que introduziu
os ministros no mundo da
política e do espetáculo, cujo ingresso ocorre com
facilidade, até mesmo por descuido,
mas cuja saída não se dá sem pagar um preço proibitivo na
majestade institucional da
Corte e naquele “terrível poder” dado ao homem para
julgar o homem. Fácil é entrar no
jogo político, difícil sair; impossível sair ileso e
recuperar a pureza de outrora.
*PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA, PÓS-GRADUADO PELA
UNIVERSIDADE PRINCETON,
EX-REITOR DA UFRGS, É CRIADOR E DIRETOR DO SITE
http://WWW.MUNDODAPOLITICA.