Artigo, Mário Rosa, Poder360 - A primeira vez que senti de perto a eletricidade do poder presidencial,


Hoje, o Rolls Royce preto Silver Wraith 1952, conversível, de couro marrom, detalhes em madeira, vai desfilar solenemente na Esplanada dos Ministérios neste 7 de setembro de 2019, trazendo a bordo o presidente Jair Bolsonaro, eleito legitimamente pelo povo brasileiro. Um militar da reserva. Egresso da mesma caserna que esse mesmo povo, não faz tanto tempo, queria tanto retirar dos assentos do mesmo Rolls Royce, os passageiros egressos das tropas quando ele trafegava pelas vias escuras do regime de 1964. E tudo que se queria era colocar ali, no Rolls Royce que hoje será o ponto alto deste 7 de setembro, um civil eleito pelo povo. Pois o povo venceu e o Rolls Royce desfilou com inúmeros civis após a redemocratização. Até que… veio o acúmulo de escândalos que culminou com a Lava Jato e o povo deu uma guinada no Rolls Royce e expulsou os civis e trouxe para bordo seu atual passageiro, o Capitão. A História faz o cavalo de pau. O Rolls Royce apenas segue.
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Cheguei a Brasília menino de colo, em 1965 e desde então acompanho os triunfais festejos da celebração de nossa Independência. E, neste dia, recordo-me da primeira vez que senti a eletricidade do poder presidencial atravessando a multidão. Eu era menino e o ano devia ser 1971, 73…nem eu sei… só lembro do olhar daquilo tudo se passando pela lente sem filtros daquele menino. O fato é que Brasília e eu crescíamos juntos e ela, àquela altura, era um enorme terreno baldio de barro vermelho e mato alto. O desfile não era na Esplanada, como hoje. No “meu” tempo, na cidade quase fantasma que ainda não existia, o Eixão Sul era o lugar que concentrava a maior parte da população. Por isso, era ali que o Rolls Royce passava. O tédio de uma capital recém-nascida consegue ser ainda maior do que o de uma já consolidada, se capitais provocam tédio em certas pessoas. Pois no meio daquela poeira e daquele vazio, o 7 de setembro era como um carnaval: o maior espetáculo do ano.
As mães, sobretudo as iguais à minha, barnabés da baixa extração do funcionalismo, acordavam cedo e se arrumavam todas para disputar as primeiras filas bem em frente à avenida. E os meninos e meninas íamos com roupas bonitas participar daquela festa. E não entendíamos direito, mas todos estavam muito alegres com o garbo e a elegância de nossos soldados. E apontavam de vez em quando, com certo espanto, para ele, como ele era importante? O general! E chegávamos antes das sete da manhã e tínhamos de disputar um lugar na primeira fila e as horas iam passando e o sol de rachar do Cerrado ia fritando a todos, mas ninguém arredava o pé. Todos esperavam por ele: o Rolls Royce…
Eu me lembro bem da agitação que foi tomando conta de todo mundo. Era uma onda. Eu, baixinho, não conseguia ver nada. Estava em cima do meio fio, mas ouvia o murmúrio vindo, sei lá, de 100, 200, 500 metros? Mas era perturbador e congelante: “é ele, é ele, é ele, é ele, é ele…”. E esse mantra sussurrado por todos os adultos, de olhos arregalados e se esgueirando, contorcendo o corpo, tornava tudo um campo elétrico para um menino como eu. Como poderia saber quem era “ele”? E que ele era o presidente? E o que afinal de contas era o presidente, como eu poderia saber? E mais ainda que ele se chamava Emílio Garrastazu Médici?
Eu só lembro daquela eletricidade atravessando aqueles brasileiros pobres, como minha mãe, vindos de todo lugar, gente que já estava ali há horas apenas para capturar aquele flagrante. E como num filme, hoje, consigo visualizar o balé de crânios na coreografia do espanto enquanto o Rolls Royce passava, lentamente. Eu, eu não sabia o que fazer. Eu não sabia nem quem era e porque era tão importante aquele automóvel. Só sei que tudo aquilo me perturbou. E o meu “grito” para participar da catarse coletiva foi levantar meu cata-vento verde amarelo com a mão direita. E quando o Rolls Royce passou por mim, lá estava eu, com o meu cata-vento verde amarelo no mais alto ponto que podia.
De lá pra cá, foram tantos os 7 de setembro que assisti. Lembro de Geisel, que frequentava uma igreja Luterana na 405 Sul, onde eu morava. E como era bizarro ver aquelas limusines infestando uma quadra modorrenta num domingo de manhã. O que era aquilo? Depois, os desfiles de 7 de setembro foram transferidos para o Setor Militar Urbano, um lugar mais afastado, mais protegido, mais imune a vaias e manifestações. Talvez o povo já não estivesse tão exultante com os passageiros do Rolls Royce. Mas como o menino podia saber? Só notou que mudaram o lugar do desfile. Até que veio a democracia e, num certo momento, o desfile se transferiu para o coração do poder, a Esplanada dos Ministérios.
O Rolls Royce já desfilou sem o presidente que se internou na véspera da posse e subiu a rampa do palácio presidencial num esquife. E desfilou com o primeiro presidente eleito pelo povo e também o primeiro deposto por um impeachment. Bolsonaro vai se sentar no mesmo banco de couro marrom em que Lula, hoje preso, desfilou oito vezes. E de onde Dilma foi tirada, pelo segundo impeachment da República. Em 7 de setembro de 2023, só há uma dúvida e duas certezas. A dúvida é quem estará a bordo. A primeira certeza é que o Rolls Royce estará trafegando no asfalto. A outra certeza é que, se estiver vivo, eu estarei como sempre estive, desde a primeira vez, com meu cata-vento verde e amarelo na mão e projetado no ponto mais alto, vendo o Rolls Royce passar.