Correio Braziliense - Privilégios mostram um Estado feito para poucos

A reportagem é de Rosana Hessel

População que precisa da máquina pública para obter assistência básica se sente cada vez mais desamparada. Para favorecer grupos específicos, governos incham estruturas que consomem cerca de 36% de todas as riquezas produzidas no país
Indignação e revolta. A cuidadora de idosos Márcia Oliveira, 45 anos, não se cansa de repetir tais palavras. Ela anda incomodada com o descaso do Estado. Todas as vezes que precisa levar o aposentado Pedro Antunes, 90, para resolver pendências bobas com a Previdência ou receber um atendimento básico em um hospital, se depara com má vontade, ineficiência, excesso de burocracia. Nada, porém, a deixa mais irritada do que ver estruturas gigantescas, com servidores saindo pelas janelas, consumindo dinheiro da população sem que a qualidade dos serviços prevaleça.
"Estou uma fera com esse Estado que favorece poucos e pune a maioria", diz Márcia. "Enquanto as famílias se ajustam à triste realidade do país, cortando até itens necessários do orçamento, os governos continuam inchados, consumindo mais e mais impostos e aumentando o endividamento. Até quando vamos pagar por isso?", indaga. A cuidadora de idosos tem certeza de que, se chegar à idade de seu Pedro, terá um Estado ainda pior. "Não teremos direito a nada. Ou a sociedade se movimenta agora para cobrar o que lhe é de direito, ou o futuro que nos aguarda será dramático", frisa.
Interesses
Márcia não está exagerando. No Orçamento da União de 2016, sancionado pela presidente Dilma Rousseff, em vez de corte de gastos para equilibrar as finanças, o governo está contando com mais impostos. A meta é ressuscitar a Contribuição sobre Movimentação Financeira (CPMF), que, a cada ano, sugará pelo menos R$ 32 bilhões das famílias e das empresas. O tributo virá sem que o governo tenha cumprido a meta de reduzir a estrutura federal, com corte de cargos comissionados. Os apadrinhados políticos continuam intocados, tirando proveito de uma máquina corrupta e perdulária.
O inchaço do Estado pode ser medido pelo tamanho da carga tributária do país, que passou de 25% do Produto Interno Bruto (PIB), em 1991, para quase 36% em 2015. Essa relação é superior à registrada na maioria dos países emergentes e se equipara à média de 35,9% verificada entre as nações ricas que integram a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Ao sugar tantos recursos da sociedade, o Estado trava o desenvolvimento e compromete o futuro. "O gigantismo estatal favorece grupos com interesses específicos. Nada do que se propõe para pôr fim a privilégios avança", diz José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Aparelhamento
Um Estado ineficiente vai além do aparelhamento, assinala o economista Bruno Lavieri, sócio da 4E Consultoria. "Um Estado grande pode se caracterizar pelo grau de intervenção na economia ou pela carga de tributos. No caso brasileiro, prevalecem as duas frentes", diz. Ele reconhece que, com as recomposições dos preços da energia e dos combustíveis, que, em 2015, retiraram mais de R$ 120 bilhões do orçamento das famílias, a intervenção direta do Estado na economia diminuiu um pouco, mas, em relação à carga tributária, dificilmente se verá num futuro próximo uma redução voluntária por parte do governo. "Os ajustes fiscais que vimos nos últimos 20 anos não se deram por meio do corte de despesas, mas pelo aumento de impostos", ressalta.
Há outro empecilho gritante: quase 90% das despesas da União são obrigatórias. As amarras foram aumentando ao longo de anos muito mais por interesses políticos do que por necessidade real. Portanto, será necessário pragmatismo para corrigir distorções e permitir se chegar a um tamanho de Estado que contribua para o bom andamento do país e atenda aos interesses da maioria da população.
Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da ONG Contas Abertas, não esconde o ceticismo. E, para justificá-lo, cita o inchaço da folha de pessoal do Executivo Federal. Entre 2002 e 2015, ingressaram na administração pública 129.880 servidores, mas a qualidade dos serviços não melhorou. No total, são 628,7 mil funcionários ativos. Na estrutura administrativa, há cerca de 100 mil cargos com gratificações, sendo que 22,5 mil são os chamados Direção e Assessoramento Superior (DAS), que aumentaram 22% nos últimos 13 anos.
Chama a atenção o fato de não haver políticas claras para as nomeações. Em vez de competência técnica e meritocracia, prevalece a fidelidade partidária, prejudicando a qualidade do serviço público de forma geral. Um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) realça as distorções. Mostra que as despesas com pessoal caminham para R$ 250 bilhões, com crescimento médio de 10,4% desde 2005.
O ministro Vital do Rego, do TCU, destaca que 64% dos órgãos pesquisados não têm os perfis profissionais desejados para orientar a seleção de gestores, o que indica a probabilidade de pessoas sem a qualificação adequada estarem ocupando funções críticas e de liderança. "Percebe-se a dificuldade de encontrar, na administração pública federal, a boa prática de investimento na preparação de potenciais ocupantes de cargos de direção", diz ele.



Revista Exame - O Fundo Soberano do Brasil é um desastre

"Se colocarem o governo para administrar o deserto do Saara”, disse certa vez o economista Milton Friedman, “vai faltar areia em cinco anos.” O Prêmio Nobel Friedman, como se sabe, era um notório crítico das intervenções estatais na economia de mercado. Mas pensava nos burocratas americanos quando disse o que disse.
Imagine o que aconteceria se o governo brasileiro recebesse a missão de administrar o Saara. Logo no início, o preço do transporte por camelo seria congelado para segurar a inflação. O imposto provisório sobre o movimento de dunas (IPMD) ajudaria a cobrir o buraco orçamentário.
Atendendo a uma demanda da bancada do oásis do PMDB, uma norma do Ministério das Areias obrigaria beduínos e tuaregues a adotar rotas diferentes das estabelecidas por seus ancestrais. O resultado, além da falta de areia, seria uma confusão completa.
Pode parecer uma parábola exagerada, mas uma história real (e recente) ajuda, de forma didática, a entender o que acontece quando o governo brasileiro se mete a fazer o que não sabe. Nesse caso, gerir um fundo de investimento — o Fundo Soberano do Brasil.
Em dezembro de 2008, o mundo vivia os efeitos do pânico causado pela quebra do banco americano Lehman Brothers. Em meio ao pacote de medidas destinadas a proteger o Brasil da crise estava a criação de um fundo soberano — nome dado aos fundos de investimento controlados por países e que aplicam, basicamente, no exterior.
Ao anunciar o novo fundo, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmou que aquele era um passo para financiar empresas brasileiras que investissem fora do país. No futuro, esse fundo seria engordado com parte dos royalties pagos à União pela exploração das reservas do petróleo do pré-sal, como fazem Arábia Saudita, Emirados Árabes, Noruega e outros produtores. A expectativa era grande.
O fundo começou com 14 bilhões de reais, e sua administração foi delegada à Secretaria do Tesouro Nacional, comandada por Arno Augustin. Começava, ali, uma das lambanças financeiras mais impressionantes da história recente do país.
No primeiro ano, os gestores do fundo não fizeram nada do que haviam prometido. O dinheiro ficou, basicamente, parado em títulos públicos brasileiros. Mas em 2010 a criatividade tomou conta do governo federal, que precisava de uma força para financiar a gigantesca capitalização da Petrobras — feita para levantar recursos para a exploração do pré-sal.
A equipe de Arno Augustin comprou nada menos que 12 bilhões de reais em ações da Petrobras. Pagou 29,65 reais pelas ações ordinárias e 26,30 reais pelas preferenciais e passou a ter 3,9% do capital da companhia. Além de não ter absolutamente nada a ver com os objetivos do fundo, esse investimento foi desastroso.
As ações da Petrobras perderam cerca de 40% de seu valor nos dois anos seguintes. Mas foi aí que surgiu o inexplicável. Arno e seus magos das finanças inverteram a lógica mais básica que rege investimentos e decidiram vender tudo.
Compraram na alta e venderam na baixa — e jogaram na lata do lixo 4,4 bilhões de reais. Até o fechamento desta edição, ninguém havia sido responsabilizado por isso. 
O que explica esse desastre? Os recursos obtidos com a venda das ações da Petrobras foram para a conta do Tesouro e ajudaram a cumprir a meta de superávit fiscal de 2012, no auge do que ficou conhecido como contabilidade criativa do governo federal.
O Tesouro se defende alegando que, como vendeu suas ações da Petrobras para o BNDES, o país não perdeu dinheiro.
“Essas operações não devem ser vistas só do ponto de vista financeiro. A economia se beneficiou dos investimentos no pré-sal, e cumprir o superávit foi importante porque abriu espaço para mais gastos dos estados e dos municípios, o que também incentivou a economia”, diz um funcionário do Tesouro, sob a condição de não ter seu nome revelado.
O secretário Arno Augustin não quis dar entrevista.
Desde o tombo de 2012, as coisas melhoraram um pouco. Em 2013, a rentabilidade do fundo foi de 9,5%. Bizarramente, porém, o fundo soberano ainda é dono de 2,5 bilhões de reais em ações do Banco do Brasil, e ninguém explica por quê.
O rendimento razoável no ano passado é fácil de entender. Cerca de 80% do patrimônio do fundo está aplicado numa conta do Tesouro, que rende 98% da taxa básica de juro da economia, a Selic. 
No último relatório anual, os gestores do fundo afirmam que esse desempenho ficou acima do mínimo estabelecido no regulamento, que é de 5% ao ano, equivalente à taxa de juro TJLP, usada como referência para financiamentos subsidiados do BNDES.
Ou seja, os gestores acham normal que o fundo capte seus recursos pagando cerca de 11% (a taxa Selic) e dê um retorno de menos da metade disso. “Há um problema na concepção do fundo”, diz Ricardo Almeida, professor de finanças da escola de negócios Insper. 
Entre os grandes fundos soberanos do mundo, nenhum tem uma estratégia parecida. Mesmo os fundos da China, cuja gestão também é subordinada ao governo, e do Oriente Médio, que são administrados como patrimônio dos príncipes que governam os países, têm uma carteira de investimentos mais diversificada.
O Adia, dos Emirados Árabes, aplica 35% dos recursos na América do Norte, 20% na Europa e 15% em países emergentes, em ações, títulos públicos e privados e imóveis, entre outros.
No maior fundo do mundo, o da Noruega, as diretrizes gerais de investimento — por exemplo, o objetivo de rentabilidade e os níveis de volatilidade tolerados — são definidas pelo banco central e pelo Ministério da Fazenda e têm de ser aprovadas pelo Congresso. Mas a execução é feita por uma equipe de gestão independente, que escolhe o que e quando comprar e vender.
No fim do ano passado, 62% do patrimônio de 840 bilhões de dólares estava aplicado em ações de empresas como a fabricante americana de celulares e computadores Apple e a companhia suíça de alimentos Nestlé. Outra parcela estava em títulos públicos de mais uma dezena de países, entre eles o Brasil (o fundo não aplica em papéis públicos na Noruega).
A principal meta é ter uma rentabilidade de 4% acima da inflação, cumprida com folga desde 2008. Já o fundo brasileiro perdeu, na média, 1,7% ao ano. Imagine o Saara na mão dessa turma.