Artigo, Bolívar Lamounier, Estadão - Golias contra Davi

Moro será morto e lançado aos cães ou o gigante cairá fulminado pela certeira funda?

“Prova”, no plano da técnica jurídica, é um conceito complexo, daí o extremo cuidado com que todo juiz tem o dever de se conduzir na apreciação das informações que lhe chegam às mãos. Mas é algo perfeitamente compreensível a partir da razão comum que Deus, em sua infinita bondade, repartiu igualmente entre os homens, dela excluindo só os de má vontade e os mentalmente prejudicados. Realmente, só um rematado idiota ou alguém movido por interesse contestará que a história montada pela defesa de Lula acerca do sítio em Atibaia é uma farsa sem tamanho. Quem contasse algo parecido para tentar iludir um cidadão comum – alguém que não tenha ocupado altos cargos políticos ou não possa arcar com os obscenos honorários cobrados por advogados de renome – deveria ser imediatamente levado à delegacia de polícia mais próxima.

A reflexão acima veio-me à mente, como é óbvio, a propósito do inquérito do sítio em Atibaia, cuja propriedade Lula contesta, e da entrada do ex-ministro José Paulo Sepúlveda Pertence na equipe de advogados que defende o ex-presidente.

Tive o privilégio de conviver com o dr. Sepúlveda Pertence nos anos 1985-86, como colega dele na Comissão Afonso Arinos, nomeada pelo presidente José Sarney a fim de elaborar um anteprojeto de Constituição. Vezes sem conta me deslumbrei com a clareza de seu intelecto e a solidez de seus conhecimentos jurídicos. Não menos importante, admirava o rigor de suas convicções republicanas. Discordávamos no tocante ao sistema de governo – ele, presidencialista, eu, parlamentarista –, mas confortava-me sentir que daí não advinha diferença alguma em nossa devoção à democracia representativa.

Faz tempo que não o encontro, mas tenho, infelizmente, a impressão de que nos distanciamos um pouco no entendimento de nossos antigos ideais e valores. Apresso-me a esclarecer que essa afirmação não decorre diretamente de ele ter aceitado integrar a defesa de Lula. Todo acusado tem direito a defesa; argumentando por hipótese, digo que eu mesmo, se fosse advogado, torceria o nariz, mas aceitaria defender o ex-presidente. Tampouco me refiro aos altos honorários que vai receber, a julgar pelo que a imprensa veiculou durante a semana, cujos reais valores não conheço e não tenho interesse em conhecer.

O que me causa estranheza no caso é a natureza da relação que aparentemente se pretende estabelecer entre a acusação e a defesa – ou, para dizê-lo sem rodeios, entre o juiz Sergio Moro e o ministro Sepúlveda Pertence. A relação que começa a se configurar me parece bem distinta da clássica lide forense, na qual as partes até certo ponto se equivalem. Não é simplesmente o fato de que uma estará do lado de cá e a outra do lado de lá, com recursos e prerrogativas semelhantes, salvo, é claro, por uma eventual diferença de qualificação intelectual. Até onde me é dado compreendê-la, o que se tem dito, e me parece plausível, é, em primeiro lugar, o que geralmente se designa como “tráfico de influência”.

Um gigante das letras jurídicas brasileiras, ex-ministro do próprio STF, é contratado para exercer uma influência difusa sobre os integrantes do Egrégio Colegiado, levando um ou outro a mudar sua linha de raciocínio – no limite, até sua convicção – no tocante à prisão após a decisão em segunda instância. Influência decorrente, portanto, de uma posição de elevado status no nível mais elevado da comunidade de magistrados. Há crime nisso? Creio que não, mas, não tendo tido oportunidade de me louvar em matéria jurídica, abstenho-me de perseguir essa linha e volto ao que me parece palpável: o recurso ao status e a singularidade da questão que ora nos ocupa no presente contexto brasileiro.

Pertence, como antecipei, estará “do lado de cá: na defesa”. Do lado de lá, encarnando a prerrogativa acusatória inerente ao Estado, estará Sergio Moro, um juiz federal de primeira instância.

A questão crucial que o STF vai examinar é se Lula deverá ou não ser preso imediatamente. Já condenado em segunda instância, tal exame recairá somente sobre questões técnicas de Direito, não sobre o mérito, já decidido.

Visto por esse ângulo, o recurso de última hora ao status – quero dizer, a clara intenção de contrastar um deus do Olimpo aos dei minori do STF e mais ainda ao pobre diabo de Curitiba que exarou a primeira sentença – parece-me indisfarçavelmente antiética. Mas, como não poderia deixar de ser, admito que estou a exprimir uma opinião, um juízo de valor, uma expressão do que a meu ver deveria ser a ética advocatícia. Afirmo, não obstante, que minha inquirição ética vai muito além da aceitação da tarefa pelo douto ex-ministro Pertence. No cerne dessa celeuma há uma questão relevante para todo o ordenamento jurídico do País e para os valores que pelo menos em tese regem nossa ordem política: a da busca da igualdade republicana.

Não admitir a prisão em segunda instância equivale a deixar livres os criminosos que possam arcar com altos honorários advocatícios e facilitar a prescrição de seus crimes, apontando aos destituídos da terra a imediata reclusão numa das fétidas masmorras mantidas pelo Estado brasileiro. Isso é República? É igualdade de tratamento? De forma alguma. É outorgar a Lula um tratamento diferenciado, mais que isso, o status de monarca absoluto, acima de qualquer norma jurídica ou costumeira, no país que se quer republicano.

Esse aí, em português corrente, o triste papel que José Paulo Sepúlveda Pertence acaba de assinar. Comparado a Moro, homem de estatura média, ele parece um Golias de três metros. O futuro, como sabemos, a Deus pertence. Em algumas semanas saberemos se Moro será morto e lançado aos cães, como queria Golias, ou se o gigante cairá fulminado pela certeira funda de Davi.

*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor do livro ‘Liberais e Antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)


Artigo, Fernando Gabeira - Meditando no carnaval

Se for a única opção, teremos o carnaval apesar de tudo

RIO — Andei por Salvador visitando mosteiros, templos e terreiros para um programa de tevê. Encontrei o carnaval duas vezes, em Ondina e no Rio Vermelho. Entrei na multidão para documentá-lo, mas não podia deixar de refletir. Não sou especialista em carnaval, nem mesmo fui um observador atento da festa nos últimos anos. Meditei um pouco sobre ele não no sentido que os budistas dão à meditação: um processo que esvazia a mente. Aliás, tenho dificuldade de alcançar esse estado de concentração e o mais perto que consigo chegar dele é quando estou boiando de costas. Meditação no meu caso é dar voltas sobre o tema.

Os entendidos dizem que o carnaval libera sentimentos reprimidos durante o ano de trabalho. Pensei: mas o que falta mais ser liberado? Na medida em que os costumes tornam-se mais ousados, o que restará aos foliões nos dias de festa?

Homem vestido de mulher, por exemplo, pode ser considerado um tipo de liberação num tempo em que isto é feito com profissionalismo e sucesso pelos artistas? Já vi poucos homens vestidos de mulher, mas prevejo uma certa decadência dessa fantasia de carnaval. Com o feminismo em ofensiva, as mulheres podem duvidar se certo modo de travestir é mais uma zombaria do que propriamente imitação.

No que me parecia um bem policiado carnaval, com PMs e guardas municipais em movimento entre os foliões, pensei no carnaval do Rio. Um motorista de táxi me disse: um estrangeiro deve achar estranho que num país em crise e o Rio em guerra civil, tanta gente saia para o carnaval. Mas um estrangeiro não sabe da força que impulsiona as pessoas, uma alegria que precisa sobreviver nas mais duras circunstâncias.

Mas há algo que me preocupa no carnaval em nosso esforço de fazer uma grande festa, apesar de tudo. No meio da semana, três vias importantes foram interditadas: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. De repente, minha reação foi pensar que alternativas teria caso tivesse de entrar ou sair da cidade. É assim que a gente começa a se acostumar.

Muitos já consultam o aplicativo Onde tem Tiroteio antes de se deslocar. Certos lugares, certas horas tornam-se proibidos. E a gente se adaptando.

Com o tempo, descobrimos que a vida está mudada e nosso comportamento é o mais ou menos clássico das populações que vivem em longos conflitos: tocar a vida com alguma normalidade apesar do caos em torno.


Há uma sabedoria nisso, mas também uma certa resignação. E se for a única opção, continuamos com o carnaval apesar de tudo, com nossa vida “normal” apesar de tudo, e as coisas podem piorar.