Artigo, Samuel Pessôa - A emenda do ajuste

O governo divulgou na semana passada o texto da proposta de emenda à constituição (PEC) que limita o avanço do gasto primário -isto é, o gasto que exclui pagamento de juros- à inflação do ano anterior.
A PEC é uma primeira resposta ao desequilíbrio das contas públicas, que está na origem da crise atual: crescimento real do gasto público de 6% anuais por 20 anos, quando, no mesmo período, a economia cresceu a uma média de pouco menos de 3%. Essa trajetória é insustentável.
Surpreende que alguns considerem que o objetivo da PEC seja destruir a Constituição de 1988. Eles ignoraram que, nos anos que se seguiram à promulgação da Carta, houve grande piora dos indicadores sociais em decorrência da aceleração inflacionária no fim do governo Sarney e no governo Collor.
Apenas após a estabilização da economia, em 1994, assistimos a uma expressiva queda da desigualdade e da extrema pobreza.
A continuar a trajetória de aumento do gasto público acima do crescimento da renda, o endividamento crescente do país resultará em insolvência, na incapacidade do setor público em cumprir suas obrigações e na retomada da inflação crônica nos anos à frente. Nada pior para os indicadores sociais do que estagnação com inflação.
O que se deseja com a PEC, portanto, é o oposto do que alguns apregoam. O objetivo é criar as condições para que o desajuste macroeconômico produzido de 2009 até 2014 não comprometa os ganhos sociais que tivemos até aqui.
Qual é o motivo de a PEC não limitar o gasto com juros?
A taxa neutra de juros é aquela compatível com pleno emprego e baixos níveis de inflação. Por diversas razões nossa taxa neutra é elevada. Caso o governo opte por uma taxa de juros abaixo da taxa neutra, o resultado é o aumento da inflação, que, além de tudo, prejudica o crescimento a médio prazo, além de aumentar a desigualdade.
Aliás, foi exatamente isso que ocorreu quando o Banco Central baixou as taxas de juros significativamente em 2011. A inflação dos preços livres chegou a 15% ao ano, e a economia desacelerou nos anos seguintes.
Para agravar o quadro, com a deterioração fiscal, a taxa neutra aumentou nos últimos anos. Para evitar inflação elevada, precisamos agora de juros ainda maiores do que no fim do governo Lula.
Ao contrário, a boa gestão fiscal na década de 2000, em conjunto com o boom de commodities e diversas reformas institucionais, resultou na progressiva queda da taxa neutra, no maior crescimento econômico e na melhora dos indicadores sociais.
Evidentemente, se a dívida pública crescer muito, o BC perderá a capacidade de utilizar a taxa de juros para controlar a inflação. Atingiremos o ponto conhecido por dominância fiscal e seremos obrigados a aceitar a escalada inflacionária.
Não chegamos lá ainda, mas estamos nos aproximando. Se algo muito drástico não for feito, iremos para lá.
Nossa sociedade já se jogou no abismo inflacionário nos anos 1980 e, desde o começo desta década, começou uma nova queda livre no mesmo precipício. Já contratamos aceleração inflacionária para daqui a quatro ou cinco anos. A PEC é um primeiro passo –de muitos necessários–, representando uma corda que o governo jogou e que a sociedade pode ou não agarrar. Se não agarrar, teremos de conviver novamente com inflação crônica e seus imensos custos sociais. Cabe a nós escolhermos se retornamos aos anos 2000 ou aos anos 1980.

Samuel Pessôa, formado em física e doutor em economia pela USP, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV. Escreve aos domingos nesta coluna. 

É a ética, estúpido!

É a ética, estúpido!
Ainda que tenhamos aprendido com Maquiavel a ver a política como ela é, não podemos não nos indignar

Geraldo tadeu monteiro, O Gobo

Em 1992, quando George Bush, considerado imbatível pelo sucesso na política externa, foi derrotado por Bill Clinton, que teria se mostrado mais apto a gerir uma economia estagnada, James Carville, assessor-chefe de marketing do democrata, sentenciou: “É a economia, estúpido!”

A partir daí, esta frase foi usada para decretar que, na era pós-ideológica, globalizada, ideais e valores não teriam mais vez, só o bolso. E eis que, pouco mais de 20 anos depois, a política retorna em grande estilo, acompanhada de sua velha parceira, a ética.

Foi a crise do capitalismo financeiro em 2008 que fez ressurgir a necessidade de uma política de valores, fazendo com que se formassem, por todo o mundo, “redes de indignação e esperança”, como Occupy Wall Street e Indignados,que levaram milhares às ruas em protesto contra as políticas de austeridade, a falta de democracia, o cinismo e a arrogância das elites políticas e financeiras em conluio criminoso e reivindicando uma “necessária revolução ética”!

Em 2013, o Brasil assistiria, atônito, à explosão de manifestações que levaram às ruas mais de um milhão de pessoas em luta por mais educação, mais saúde, melhores serviços públicos e contra a falta de representatividade dos partidos e a corrupção na política.

Na base da insatisfação, estavam mais democracia, mais respeito ao cidadão e mais transparência, todos valores éticos. No Brasil e no mundo, hoje, o clamor é pela ética na política.

Mas, diante desse clamor, o que a Operação Lava-Jato pedagogicamente tem nos mostrado é um deprimente espetáculo de cupidez e cinismo de uma classe política que implantou um verdadeiro sistema criminoso na política.

Ainda que tenhamos aprendido com Maquiavel a ver a política como ela é, não podemos não nos indignar com a avidez pelas propinas milionárias, pelos cargos a serem desfrutados por dias ou até horas, pelas comezinhas barganhas por verbas públicas

E tudo embrulhado no mais puro cinismo que proclama: “Sou vítima de perseguição”, “Nada foi provado contra mim” ou pelo malabarismo das maiorias moles que fazem o amigo (ou sócio?) de ontem se tornar o inimigo de hoje.

Apesar da inabalável alienação dos poderosos, tem avançado no Brasil um movimento para inscrever nas leis a exigência de uma ética republicana, fundada no respeito à coisa pública e ao bem comum: a Lei da Ficha Limpa, a proibição do financiamento de campanhas eleitorais por empresas privadas, a Lei Anticorrupção e a Lei de Acesso à Informação.

Ainda estão na pauta do Congresso a Proposta de Lei da Sociedade Civil Sobre Acordos de Leniência e a Proposta de Lei das Dez Medidas Anticorrupção, patrocinada pelo Ministério Público e apoiada por dois milhões de cidadãos. Todas essas leis e propostas de lei advêm de mobilizações populares, e não da vontade dos políticos, por razões óbvias.


Geraldo Tadeu Monteiro é professor de Ciência Política do Iuperj e da Candido Mendes