O isolamento social como gatilho para a violência contra mulheres

O isolamento social como gatilho para a violência contra mulheres
Aumento de casos nos tribunais

Agressão e feminicídio se destacam

A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos registrou 197 denúncias de violência contra mulher relacionadas a isolamentopicture-alliance/dpa/P. Steffen (via DW)

“Não, não foi a 1ª ameaça… Espera, desculpa, preciso interromper.” O cachorro late. Célia Maria de Paula precisa receber alguém no apartamento onde mora, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. “Oi, eu estou dando uma entrevista. Aqui está a porta nova e o material, tá bom?”. Célia volta e explica por que a entrada do apartamento onde viveu com o marido por 12 anos precisa de conserto. “Os vizinhos arrombaram a porta para me socorrer. Mas, então, podemos continuar a nossa conversa”, diz.

A professora da rede pública de ensino tenta seguir com naturalidade, mas sua fala está pausada. Ainda é difícil olhar no espelho e ver tão explícitas as marcas da agressão. Foram 5 golpes de facão na cabeça, agora raspada, e uma mordida próxima ao olho. O marido foi preso em flagrante por tentativa de homicídio.

Célia e o marido ficaram juntos em casa por 2 meses até o ataque, que ocorreu em 6 de abril. A professora estava de licença médica por causa de uma cirurgia e, depois, continuou em casa com a suspensão das aulas devido à pandemia da covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus. O marido sofre de transtorno bipolar e estava desempregado. Ele sempre recusou tratamento médico para a doença mental.

“Eu sempre consegui me proteger. Sempre que ele vinha para cima de mim, eu segurava. Mas, dessa vez, infelizmente, eu não consegui me defender. Eu não me conformo com o fato de ter ficado com ele todo esse tempo. Era realmente para eu ter morrido”, conta.

“Depois do que aconteceu, não tenho como ficar em isolamento. Tem muita burocracia para resolver”, conta Célia Maria de Paula, que em 16 de abril, quando deu a entrevista à DW Brasil, completava 47 anos de idade.

Naquele dia, além de consertar a porta, Célia foi à Coordenadoria dos Direitos da Mulher da Prefeitura de Taboão da Serra para a 1ª consulta com uma psicóloga e, na sequência, com uma psiquiatra. “Geralmente, ele [marido] fazia um bolo. E, agora, com a covid-19, todo mundo está trancado em casa, ele está trancado na prisão, e eu estou tentando me destrancar de dentro de mim”, conta.

“Meu erro foi acreditar que ele nunca pudesse fazer aquilo”, continua. Mesmo com muito medo e dor, Célia está transformando a experiência trágica que viveu numa bandeira. “Eu já levantava a bandeira da saúde mental e a do feminismo nas escolas. Agora, estou no lugar de fala da violência e faço um diário dessa fase no meu perfil no Instagram (@celiadepaula73). Quero batalhar para prevenir a violência contra a mulher e para que autoridades elaborem políticas públicas sobre a saúde mental masculina”, diz.

PRESSÃO E INSEGURANÇA
“A pressão e a insegurança do isolamento nesta pandemia acentuam a violência doméstica pré-existente, como se fosse um gatilho para os comportamentos mais violentos”, explica a promotora do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) Gabriela Manssur, que articula ações contra a violência doméstica há 15 anos.

Autoridades judiciárias e redes de enfrentamento à violência contra a mulher ainda consolidam os dados oficiais, mas o fato é que os casos de agressão, violência sexual e feminicídio têm aumentado exponencialmente desde o início das medidas de isolamento social impostas para conter a transmissão do novo coronavírus. Esse cenário também é visto em outros países, como França e Estados Unidos.

No início de abril, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que, com a pandemia, houve um “crescimento horrível da violência doméstica em nível global” e pediu que os governos incluam medidas de proteção a mulheres e contra violência doméstica entre seus planos de combate à covid-19. “Para muitas mulheres e meninas, a maior ameaça está precisamente naquele que deveria ser o mais seguro dos lugares: as suas próprias casas”, disse.

Maria Cristiana Ziouva, coordenadora do Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), demonstra preocupação com os números. “Estamos recebendo informações dos tribunais de Justiça de todo o país. Os casos de violência doméstica e de feminicídio aumentaram significativamente nesse período de isolamento”, diz.

Em março, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro registrou um aumento de 50% nos casos de violência doméstica durante o período de confinamento. O portal da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos contabilizou pelo menos 197 denúncias de violência contra a mulher relacionadas ao período de isolamento.

Luciana Terra, diretora do Instituto Justiça de Saia, explica que, além dos problemas econômicos, a frustração dos homens “que veem suas masculinidades afetadas pelo fato de não estarem produzindo e terem o seu papel de provedor afetado” também são um gatilho.

“O consumo de álcool é um dos fatores. No caso de casais que moram na mesma casa é por causa do celular. A mulher fica na internet vendo notícias ou falando com outras pessoas, e o companheiro fica com mais ciúmes ainda. E as agressões acontecem”, conta.

REDES DE APOIO ONLINE
Rio de Janeiro, 9 de abril de 2020: uma mulher perseguida pelo ex-marido – um capitão da Polícia Militar do Rio – estava prestes a cometer suicídio. As agressões psicológicas e físicas constantes a levaram à depressão profunda. A situação era insuportável e se agravou quando o ex-companheiro pulou o muro da casa onde ela vive com os filhos do casal vestindo uma máscara. Ele não aceita o fim do relacionamento.

Em meio ao desespero, a mulher enviou uma mensagem por Whatsapp ao programa Justiceiras, rede de apoio e acolhimento criada no final de março pela promotora Gabriela Manssur, devido ao recente aumento de casos de violência, e que já reúne cerca de 1.000 voluntários em todo o país.

A advogada Luciana Terra foi informada sobre o caso às 19h. Em poucos minutos, uma médica, uma assistente social e as voluntárias que estavam em contato com a vítima se reuniram por teleconferência, na apelidada “sala de justiça”, criada para dar uma resposta imediata aos casos mais urgentes.

Foram 20 minutos de discussão. Ainda durante a reunião, Luciana fez o registro do boletim de ocorrência online para solicitar uma medida protetiva, que foi autorizada pelo juiz na manhã seguinte. A assistente social e a psicóloga seguiram trocando mensagens com a mulher para que continuasse a luta por uma vida sem violência.

“Hoje, ela já está dando ‘aulas’ de empoderamento feminino”, conta Luciana Terra. “Nunca me senti tão acolhida”, escreveu a mulher para o grupo Justiceiras. “Pelo Whatsapp, estamos conseguindo fazer essa comunicação com mulheres que estão invisíveis, mas não podem ser invisibilizadas”, diz Manssur.

No dia 15 de abril, às 22h30, uma mulher do interior do Paraná relatou pelo Whatsapp que o marido ameaçou esquartejá-la. A vítima estava numa linha de telefone com uma voluntária local, enquanto o restante do grupo da “sala de justiça” articulava uma resposta para proteger a mulher. “Checamos o endereço dela pelo GoogleMaps, e não há nenhuma delegacia da mulher naquela cidade”, conta Luciana.

Uma voluntária responsável pelo caso sabia que o agressor, que já se encontrava na cidade da vítima, tinha sido condenado por tráfico de drogas e estava em liberdade provisória em Belém, no Pará, e não podia se ausentar sem autorização judicial.

“Eu falei: ‘Esse cara pode ser preso agora! Liga para a PM [Polícia Militar]. Com a vítima ainda na linha, foram atrás para prendê-lo, e ele foi à delegacia prestar depoimento”, conta Luciana, com satisfação. “Não tem daqui a pouco. É agora. É a vida de uma mulher que está em jogo.”

SERVIÇOS EMERGENCIAIS EM FUNCIONAMENTO
Apesar das medidas de isolamento, o Judiciário e os serviços emergenciais de atendimento a mulheres vítimas de violência estão funcionando em todo o país, segundo o CNJ. O Conselho recomendou que os juízes ofereçam alternativas para que as mulheres possam fazer, por exemplo, um pedido de prorrogação de uma medida protetiva sem ter que comparecer ao tribunal, como exigido.

“Estamos fazendo uma campanha alertando as mulheres de que o Judiciário continua trabalhando. As medidas protetivas de urgência continuam sendo concedidas e prorrogadas. Toda a rede de enfrentamento à violência contra a mulher está ativa no país todo. Essas mulheres não estão completamente desprotegidas”, afirma a conselheira do CNJ Maria Cristiana Ziouva.

Larissa Schmillevitch é coordenadora do Mapa do Acolhimento, plataforma de mapeamento colaborativo de serviços públicos de apoio próximos às mulheres vítimas de violência. Mais de 500 novos voluntários foram cadastrados numa força-tarefa para atualizar o mapa, que já conta com cerca de 5.000 serviços registrados.

“Ajudamos essa mulher a criar estratégias e planos de segurança em casa, como, por exemplo, elaborar códigos para pedir ajuda pelo celular e prever uma rota de fuga em casa, se necessário. Além disso, é importante preparar uma bolsa com documentação, medicamentos e números de abrigos emergenciais, delegacias e serviços de saúde”, explica.

A Central de Atendimento à Mulher 180 está disponível 24 horas. Além de fazer denúncias, é possível pedir orientação jurídica e solicitar encaminhamento para as redes de enfrentamento à violência e de apoio à mulher.