O despudor de Ortega


Presidente da Nicarágua já não tem qualquer pudor em mostrar a verdadeira face ditatorial de seu governo.

Em mais um desdobramento da espiral de violência e arbitrariedades em que está mergulhada a Nicarágua desde abril, quando o presidente Daniel Ortega recrudesceu a repressão às manifestações contrárias a seu governo, a polícia invadiu e depredou as redações do jornal Confidencial e da revista Niú na noite de 13 de dezembro. As publicações são dirigidas pelo jornalista Carlos Fernando Chamorro, filho da ex-presidente Violeta Chamorro, que governou o país entre 1990 e 1997, e dos mais aguerridos opositores ao governo. Após o ataque, Chamorro afirmou que o trabalho da imprensa não cessaria diante da violência do governo porque “a redação do Confidencial está na alma e no cérebro de seus jornalistas”.

Uma manifestação de protesto aos ataques à imprensa livre também foi brutalmente reprimida pelas forças do governo de Ortega, que já não tem qualquer pudor em mostrar a verdadeira face ditatorial de seu governo. Ortega tem exercido o poder na Nicarágua, intermitentemente, desde a Revolução Sandinista de 1979. O mandato atual teve início em 2007.

Tanto o jornal como a revista são “acusados” pelo regime sandinista de estarem vinculados à ONG Centro de Investigação da Comunicação (Cinco), fundada por Carlos Chamorro. Este nega, afirmando que há muito não participa da direção da entidade. Ortega acusa a ONG de ser uma das organizações não governamentais que estariam por trás da onda de manifestações que clamam por reformas econômicas e pela destituição de seu governo desde o início do ano.

Enquanto as redações eram invadidas pela polícia, a Assembleia Nacional da Nicarágua cassou a personalidade jurídica do Cinco e de outras ONGs ligadas à defesa da liberdade de imprensa e dos direitos humanos no país, entre as quais o Centro Nicaraguense dos Direitos Humanos (CENIDH) e o Instituto de Estudos Estratégicos e de Políticas Públicas (IEEPP). O Parlamento aludiu a supostos descumprimentos de formalidades burocráticas para justificar a cassação formal das ONGs. Daniel Ortega controla o Poder Legislativo e boa parte do Poder Judiciário.

Em nota, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil condenou veementemente a violência perpetrada pelo governo e pelo Parlamento da Nicarágua. “O governo brasileiro condena, em termos enérgicos, o cancelamento pela Assembleia Nacional da Nicarágua da personalidade jurídica de diversas organizações de defesa dos direitos humanos no país”, diz o texto. O MRE lembra que as instituições cassadas são “fundamentais para as atividades do Grupo Interdisciplinar de Peritos Independentes (GIEI) e do Mecanismo Especial de Acompanhamento para a Nicarágua (Meseni)”, órgãos criados pela Organização dos Estados Americanos (OEA).

O grave atentado contra as redações também foi repudiado pelo governo brasileiro. “Tais decisões agravam o quadro de perseguição sistemática aos defensores de direitos humanos, além de representarem restrição inaceitável às liberdades individuais, de expressão e de associação”, diz a nota do Itamaraty.

Não poderia ter sido outra a atitude da chancelaria do País, que reafirma o valor da democracia e das liberdades individuais e de imprensa no momento em que tais valores se encontram sob ferozes ataques em várias partes do mundo. “O Brasil associa-se à comunidade internacional e, uma vez mais, conclama o governo da Nicarágua a criar, sem demora, condições para o estabelecimento de diálogo nacional com vistas à restauração da normalidade no funcionamento das instituições e de padrões de convivência democrática da nação centro-americana”, encerra a nota.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) responsabilizam diretamente o governo de Daniel Ortega por cerca de 300 mortes só neste ano. É provável que o número de vítimas seja ainda maior, já que observadores externos têm dificuldade para realizar inspeções no país.

Artigo, Rolf Kunz, Estadão - Depois do terno, falta cuidar do plano de governo


Só falta um plano de governo para ser executado a partir de 1.º de janeiro. É um detalhe muito mais importante no Brasil do que na Suíça. Talvez por falta de imaginação, o governo suíço gasta menos do que arrecada e entrará em 2019 sem um grande, premente e emocionante problema financeiro e econômico.

Quanto ao plano do novo governo brasileiro, ou inexiste ou continua disfarçado por uma porção de promessas obscuras, como a de vender estatais para diminuir a dívida pública. As demais providências parecem estar em ordem. O terno da posse foi experimentado, as preces foram acertadas e a lista de convidados e desconvidados foi aprontada. Poderá aparecer até o primeiro-ministro de Israel, atraído provavelmente pela curiosidade. Como serão esses estranhos e raros seguidores do estranho e raro Donald Trump? Afinal, quase nenhum governo de país com algum peso econômico havia prometido, até agora, seguir tão fielmente o exemplo trumpista e mudar a embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém. Enfim, com carro aberto ou fechado, a festa poderá ser um sucesso. Ponto básico: um novo Brasil será prometido, livre do esquerdismo dominante desde a primeira missa, celebrada, em estilo moderninho, diante de índios pelados. Seria o celebrante um adepto da Teologia da Libertação?

Recebida a faixa, pronunciados os juramentos e assinados os papéis, será preciso enfrentar os fatos. Não está claro, ainda, como o novo governo cuidará de suas contas no primeiro ano de mandato. Será um período crucialmente importante, num país atolado em crise fiscal, com déficit primário estimado em R$ 139 bilhões, dívida pública acima de 75% do produto interno bruto, uma das mais pesadas do mundo, e desemprego pouco abaixo de 12% da força de trabalho.

Sem poder adiar o reajuste do funcionalismo, forçada a suportar os efeitos em cascata da revisão salarial do Judiciário e de outras bombas fiscais, como os incentivos à indústria automobilística, a equipe econômica terá de batalhar muito para respeitar o teto de gastos e a regra de ouro (proibição de tomar empréstimos para cobrir despesas de custeio).

Dois funcionários do atual governo, convocados para a nova turma, devem ter boas noções de como atravessar esse atoleiro. Um deles é Esteves Colnago, ministro do Planejamento na gestão de Michel Temer. O outro é Mansueto Almeida, secretário do Tesouro.

Graças a esses e a outros técnicos, o Brasil chegou ao fim de 2018 sem um desastre completo nas contas públicas, apesar das bombas fiscais armadas no Congresso, no Judiciário e até em algumas áreas do Executivo. Foi um trabalho dificultado pela fragilidade política do presidente, acuado por denúncias desde a manobra do procurador Rodrigo Janot com os irmãos Batista, controladores da J&F. A maior parte da nova equipe, incluído o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem pouca ou nenhuma experiência na administração pública e nas negociações com parlamentares. Se prensas e caneladas funcionarão, como sugeriu mais de uma vez o futuro ministro, só se saberá mais tarde. Será uma novidade se funcionarem.

Mas antes de qualquer prensa será preciso decidir pelo menos o roteiro básico da política econômica. Promete-se, por exemplo, manter apenas o Imposto de Renda sobre o salário, eliminando os demais tributos sobre a folha de pagamentos. A intenção pode ser muito boa, mas falta explicar como será compensada a receita perdida. Faltam respostas claras e ninguém parece haver pensado muito sobre o assunto, como se percebe em reportagem no Globo de sexta-feira.

Entre as alternativas ainda aparece uma possível exumação da aberrante Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Alguns membros do novo governo parecem fascinados por essa ideia, tanto quanto o presidente e seu ministro da Educação pelo tema da sexualidade na escola fundamental. Mas mesmo com a exumação a conta ficaria desequilibrada.

Sendo obscuro esse ponto, igualmente obscura tem de ser a proposta de reforma tributária. Não basta prometer simplificação, nem discutir o assunto sem cuidar do destino do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência estadual. Boa parte das distorções do sistema está associada a esse tributo. Pode-se pensar, como já se mencionou, num único imposto nacional sobre o valor agregado, com absorção do ICMS, mas ninguém disse como funcionará nem como será a negociação com os governos estaduais.

Quanto à venda de estatais para reduzir a dívida pública, é uma conversa sem muito sentido. Há razões excelentes, como ganho de eficiência, para privatizar várias empresas, mas tem pouco sentido vincular essa ideia à solução da dívida, exceto como complemento. Liquidar ativos para reduzir endividamento é política às vezes seguida por empresas, mas só como parte de uma estratégia de ajuste. Não adianta recorrer a isso se as contas primárias do governo continuarem no vermelho e faltar dinheiro para o pagamento de juros.

A dívida inevitavelmente voltará a crescer. Como será o ajuste ninguém explicou. A reforma da Previdência será essencial, mas nem o projeto está claro. Exemplo: a mudança será fatiada, como pareceu admitir o presidente? A recém-anunciada ideia de ouvir especialistas para desenhar a reforma é boa, mas veio com atraso, embora sugerida há tempos por analistas.

Fora dessa pauta, há alguns pontos claros. A política externa será alinhada ao trumpismo e contrária, portanto, aos ideais de uma ordem multilateral e razoavelmente civilizada. A política educacional terá como prioridade (nenhuma outra foi até hoje indicada) a salvação ideológica e moral da infância e da juventude. Ah, o futuro ministro da Cidadania, Osmar Terra, propôs limitar a venda de bebidas alcoólicas para conter a violência. Apesar das dificuldades, um governo de ideias ambiciosas.

*Rolf Kuntz é jornalista.

Artigo, Luiz Holanda, Jornal da Cidade - O recado do Alto Comando: simples, direto e implacável


Não há nenhuma dúvida de que algo está mudando depois da eleição de Jair Bolsonaro. Vitorioso com mais de dez milhões de votos sobre o candidato petista, que responde a 32 processos que vão desde o recebimento de dinheiro da Lava Jato a denúncias por improbidade administrativa e superfaturamento de obras, o presidente eleito - ao escolher vários militares de alta patente para compor o seu governo -, deu o tom da mudança.
O recado parece dizer que, daqui para a frente, o modelo petista de gerir a coisa pública, baseado exclusivamente na corrupção, não será tolerado. Depois de anos de roubalheira – garantida por decisões mantendo a impunidade dos corruptos -, o País acordou, e o fez sob a ameaça de trazer os militares de volta ao poder.
A maior recessão já registrada na economia, a maior dívida pública de todos os tempos e a maior quantia de dinheiro paga pelo governo somente em juros, não podiam continuar. Só no período de Dilma Rousseff a dívida chegou a R$ 1,6 trilhão. Daí não ser possível esperar que um governo, cuja plataforma política foi maior segurança e a ética na coisa pública, permitisse a continuidade dos desmandos.
Pela lógica comum, até os mais empedernidos corruptos, entre os quais alguns membros do Congresso Nacional, sabem que não é possível que um governo, eleito com a promessa de moralizar o País, não se garanta diante da turbulência que vem por aí. E o exemplo maior veio com a polêmica decisão tomada pelo ministro Marco Aurélio Mello, que, no último minuto da última sessão do STF mandou soltar 167 mil integrantes das facções marginais e da bandidagem organizada (inclusive Lula) condenados em segunda instância.
A repercussão negativa foi tanta que o Alto Comando do Exército se reuniu por meio de videoconferência para saber que atitude tomar. Embora o teor da reunião não tenha sido divulgado, o recado foi claro: ou se caça a decisão pela própria Justiça, ou a caçaremos pela força. Os militares expuseram sua insatisfação diante da tentativa de se desestabilizar o novo governo por meio de uma liminar lançada à indignação nacional. Segundo os procuradores da República, a liberação beneficiaria os criminosos de “colarinho branco” e colocaria em risco a Lava Jato e as delações premiadas, além de consagrar a impunidade.
Trinte e três anos depois de devolver o poder aos civis, os militares, que nunca estiveram tão em alta na política nacional como agora, jamais permitiriam que pessoas envolvidas em ilícitos, presas e condenadas, fossem soltas por obra e graça de uma canetada, mesmo vinda de um ministro do STF.
Por falta de aviso não foi. O comandante do Exército, general Villas Bôas Correa, quando se recusou a punir o vice-presidente eleito, general Mourão, pelas declarações que fez quando estava na ativa a respeito de uma possível intervenção militar caso o Judiciário não pusesse fim a tanta impunidade, já avisara. Naquela ocasião Villas Bôas disse que as Forças Armadas dispõem de “um mandato” para “intervir na eminência de um caos” no País.
Ao mesmo tempo, nas redes sociais se multiplicaram as mensagens de apoio a Mourão, enquanto aumentavam os pedidos para uma intervenção militar. Naquela ocasião, a fala do comandante do Exército foi apenas um aviso. Já a cassação da liminar de Marco Aurélio - por imposição do Alto Comando -, foi um claro e velado recado.
Tem muita gente achando que não haverá intervenção militar porque a comunidade internacional não permitiria. Isso é um erro. Ninguém protege um país de mais de 200 milhões de habitantes apenas protestando contra possíveis violações dos direitos humanos, o que já é o caso há 40 anos. O máximo que poderá haver, caso os militares tomem o poder, seria apenas alguns protestos, e nada mais.
Os militares não desejam intervir, mas não aceitam a corrupção como um dos princípios fundamentais de nossa administração pública. Tampouco aceitam a impunidade garantida por alguns dos ministros de nossa mais alta Corte de Justiça.
Não permitir que os corruptos assumam os cargos mais importantes da Nação já é um consenso. Se isso não bastar e os generais resolverem colocar os tanques nas ruas, só Deus sabe o resultado. Recados não faltam; basta apenas ouvi-los.