Autoridades nem sequer enxergavam a ponta do iceberg da
criminalidade organizada no Brasil
O projeto de lei apresentado pelo ministro da Justiça,
Sergio Moro, veio ao encontro dos anseios da população e, ao citar pelo nome as
organizações criminosas que atuam no Brasil, a todos surpreendeu.
Por seguidos anos, autoridades com expressiva fatia de
poder cometeram o grave e imperdoável erro de ignorar, negar ou minimizar a
presença do crime organizado no País. Sem diagnóstico não há médico que cure. O
câncer lançou metástases e se espalhou pelo País e pelo exterior.
Nesse cenário, propalou-se que a diminuição paulatina do
número de homicídios registrados até o ano de 2018 no Estado de São Paulo se
deveria a avanços da política de segurança pública. Não. Essa redução coube ao
Primeiro Comando da Capital (PCC), que, ao aqui crescer, fez decrescer o número
de homicídios.
Foi-se a época das seguidas e numerosas mortes entre
grupos de criminosos pela liderança e demarcação de território. Finda a
rivalidade, acalmaram-se presídios, favelas e bairros da periferia. Não existe
explicação plausível para que a política de segurança pública de São Paulo
tivesse conseguido conter homicídios e não, em igual proporção, roubos e
latrocínios.
O homicídio atinge o bem maior do ser humano, a vida. O
roubo, ainda que tenha como finalidade a subtração da coisa alheia, pelos
elementos que o compõem - a violência e a grave ameaça - traz ínsito o risco
potencial de morte, que, ao se concretizar, transforma a conduta num dos mais
graves crimes hediondos, o latrocínio. Ao pôr em risco indistintamente toda a
coletividade em qualquer lugar público ou privado, o roubo expõe à morte um
número bem maior de pessoas do que o homicídio. Enquanto o roubador age pelo
desejo de possuir a coisa alheia, o homicida, ao exibir comumente laços com a
vítima (afetivos, de parentesco, amizade ou desafeição), move-se por questões
pessoais ou íntimas. Por isso grande parte dos homicídios tem como palco locais
fechados, como o recôndito dos lares, festas, bares ou áreas ermas e
desabitadas, que favorecem emboscadas e o sucesso da ação criminosa. Essas
peculiaridades conferem natureza especial a esse crime, a dificultar a
prevenção pela polícia - ao contrário dos roubos e latrocínios, cuja redução
está diretamente ligada à eficiência da política de segurança pública do Estado.
À parte os costumeiros homicídios previstos no Código
Penal de 1940, surgiram os nem sequer imaginados pelo então legislador: os
resultantes de batalhas que compõem verdadeiras guerras entre grupos, gangues e
facções. A que levou o terror ao Ceará teve por objetivo desestabilizar o
Estado; as que decorreram em 2017 no Rio Grande do Norte e as rotineiras no Rio
de Janeiro mostram nítida a luta pelo poder - consolidado há tempos no Estado
fluminense pela hegemonia da facção paulista. A dominância dessa facção exibe
outra face: a que responde por súbitos aumentos do número de homicídios, como
se viu nos ataques do ano de 2006. Coube à mídia nacional, à repercussão
internacional e ao clamor público, no ano de 2017, o alerta às autoridades, que
nem ao menos enxergavam a ponta do iceberg da criminalidade organizada no
Brasil.
Ao lado do pacote anticrime, o plano do governo estadual
para enfrentar os males do sistema prisional noticiado neste jornal em 19 de
janeiro dá vida ao esgarçado fio de esperança que resta aos cidadãos paulistas.
Neste Estado, um presídio de segurança máxima serviu de berço à facção
criminosa que, ao cooptar de forma sistemática novos integrantes presos,
tranquiliza unidades prisionais e mantém a hegemonia. A proposta do governo de
São Paulo para a construção de estabelecimentos para abrigar condenados sem
antecedentes e primários, não familiarizados com o crime organizado e que, a
par disso, exibem periculosidade é um passo decisivo para o fim do recrutamento
de presos e da superlotação dos presídios. A medida, contudo, demanda tempo;
outras, prementes e paralelas, exigem ser concretizadas.
O desmonte das escolas do crime e o fim do comando de
ações criminosas do interior de presídios se fazem por transferências como as
recentes e pela rígida separação e fiscalização dos presos - jamais pelo
esvaziamento do cárcere, como sugerem alguns. Ao menos neste Estado, o regime
inicial fechado é fixado para aqueles cuja segregação se faz efetivamente
necessária.
Oportuna, assim, a visita de representante do governo
estadual a presídios nos Estados Unidos, como registra a mesma matéria. No ano
de 1995, em visita a penitenciárias federais naquele país, notamos que os
presos, numa delas, exibiam semelhante e robusto porte físico. No curso da
visita ficou clara a razão: imensa área abrigava variados equipamentos de
musculação. Como reconhece a medicina, endorfina e serotonina, liberadas em
atividades físicas, são os hormônios do bem-estar.
Anos depois, nesta capital, em visita de correição a uma
delegacia de polícia, presenciamos a rotina da unidade alterada pelas visitas
íntimas que se iniciaram na carceragem, atrás de improvisado biombo montado com
lençol e sob a coordenação de servidores públicos. Afora o trabalhoso aparato
para a organização, é ponte de transmissão de informações preciosas e ingresso
de drogas, apreendidas não raras vezes na posse de visitantes, ocultas nos
órgãos íntimos.
Parcela significativa de ações para conter a
criminalidade também cabe ao Legislativo federal. Não há sequer figuras penais
adequadas e penas à altura das barbáries que vêm sendo perpetradas no Brasil.
Como a lei está sempre passos atrás do criminoso, é essencial um Legislativo
atento, sensível e célere.
O caminho a trilhar é longo e o êxito muito está a
depender da sintonia entre os três Poderes da República.
*MARCIA DE HOLANDA MONTENEGRO É PROCURADORA DE JUSTIÇA DO
MINISTÉRIO PÚBICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
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